A V I S O


I am a Freemason and a member of both the regular, recognized ARLS Presidente Roosevelt 75 (São João da Boa Vista, SP) and the GLESP Grande Loja do Estado de São Paulo, Brazil. However, unless otherwise attributed, the opinions expressed in this blog are my own, or of others expressing theirs by posting comments. I do not in any way represent the official positions of my lodge or Grand Lodge, any associated organization of which I may or may not be a member, or the fraternity of Freemasonry as a whole.

terça-feira, 16 de fevereiro de 2010

Anexo da Tese (perdoem se o texto degradou... culpa da formatação!)

 

ANEXO



PAULO SETÚBAL - BIOGRAFIA


Em Tatuí, em primeiro de janeiro de 1893, nasceu o cronista, escritor, poeta e ensaísta Paulo Setúbal, filho de Antonio D’Oliveira Setúbal e Maria Tereza Nobre Setúbal.

Seu pai viera de Porto Feliz abrir um ponto comercial na Rua do Comércio (atual 11 de Agosto). Tatuí, nessa época era uma cidade modesta e pobre, com humilde casario colonial. A 27 de dezembro de 1897, morre o Capitão Antonio, deixando a viúva encarregada da criação de nove filhos pequenos: João, Laerte, Antonio, Ademar, Paulo, Francisca, Clarice, Eurídice e Bernardina. D. Maria Tereza, a D. Mariquinha, mãe de Paulo, toma frente nos negócios, mantendo a subsistência de sua numerosa prole e mantendo-os nos estudos.

Paulo Setúbal começou seus estudos na escola particular do Prof. Francisco Evangelista Pereira de Almeida ("seo" Chico Pereira), transferindo-se logo em seguida para o Grupo Escolar de Tathuy, que mais tarde passou-se a chamar Escola Estadual de Primeiro Grau João Florêncio. Sua primeira professora foi D. Mariquinha Nazaré, que o incumbiu de declamar, aos sábados, nas festinhas que a escola promovia.

Ao terminar as primeiras letras, seus professores incentivaram sua mãe para que Paulo continuasse seus estudos em São Paulo, transferindo-se toda a família para a Capital. Passaram a residir, primeiramente, na Rua Tabatingüera e, depois, na Rua das Flores. Paulo matriculou-se no Ginásio Nossa Senhora do Carmo, dos Irmãos Maristas, onde fez curso de Humanidades.

Na época, convivendo com "meninos de costumes soltos", começou a desacreditar. Sua alma tornou-se insensível aos acentos religiosos que outrora o emocionavam. Para ele e seus novos amigos, temas como Deus, milagres, eram puras hipóteses, sem valor racional. Quando ingressou na Faculdade de Direito de São Paulo, estava impregnado da literatura e filosofia ateísta de Guerra Junqueiro, Antero de Quental e Alfred de Musset.

O ambiente da Faculdade de Direito de São Paulo, era a mais atormentada, inquieta e tumultuosa companhia intelectual, com Haeckel e Darwin desvendando mundos novos do conhecimento. Liam-se e discutiam-se os filósofos como Spencer, Kant e Hegel. Na poesia, Beaudelaire, Gautier, Lecomte de Lisle e Banville eram os deuses. Nesse ambiente, formou-se a inteligência e desabrochou a sensibilidade de Paulo Setúbal.

Quando cursava o segundo ano de Direito, resolveu fazer-se jornalista, conseguindo o lugar de revisor do diário "A Tarde". No primeiro aniversário do jornal, preparou-se uma edição especial, na qual fora impressa uma de suas poesias, passando então a trabalhar na redação, tendo uma coluna a seu encargo. Para festejar a promoção, foi comemorar com os amigos, voltando tarde para casa e levemente indisposto. No dia seguinte verificou-se que seu estado de saúde era grave: tuberculose. Seu médico recomendou repouso absoluto voltando então para Tatuí, onde permaneceu seis meses. Retornou a São Paulo já praticamente curado. Passou em seguida, breve período em Campos de Jordão para completar a cura.

Em 1914 (aproximadamente 21 anos) bacharelou-se, conseguindo o cargo de Promotor Público da Capital, interinamente. Foi uma grande vitória. Findo o prazo, foi renomeado mais duas vezes no cargo. Nesse período, colaborou em quase todos os jornais e revistas da época: "A Cigarra", "O Diário Popular", “Revista do Brasil”, "O Estado de São Paulo", "O Jornal do Comércio". Quando lhe foi oferecida a cadeira efetiva nesse cargo, recusou, pois seu objetivo era tornar-se advogado. Abrindo seu escritório de advocacia, fez sua primeira defesa como assistente do célebre Dr. Marrey Junior, com pleno sucesso. Não lhe faltou mais serviço.

O ano de 1918 (por volta dos 25 anos) trouxe a gripe espanhola e Paulo Setúbal foi um dos primeiros a adquiri-la, sob a forma mais violenta: a de gripe pneumônica. Esteve por vários dias entre a vida e a morte. Seu estado de saúde era desesperador. Seu organismo jovem reagiu, mas foi proibido pelo seu médico a permanecer em São Paulo. Partiu então para Lajes, em Santa Catarina, onde residia seu irmão mais velho. Por lá permaneceu 2 anos.

Em 1920. A "Revista do Brasil" lançou "Alma Cabocla", seu livro de estréia, a que Paulo Setúbal denominou “o livro de minha mãe".

Em 22 de junho de 1922 (29 anos), casou-se com D. Francisca de Souza Aranha, filha do Senador Dr. Olavo Egydio Aranha, com quem teve três filhos: Olavo Egydio, Maria Vicentina e Terezinha. O casamento aumentou-lhe a segurança e a prosperidade. Sua esposa foi, além de companheira num lar feliz, a inspiradora, a secretária, a revisora de suas obras, de quem passou a ser, sempre, a primeira leitora, a crítica, a confidente.
Com obras vertidas para o francês, inglês, russo, croata, árabe e holandês, Paulo já era escritor de renome nacional, quando, em 1928 (aos 35 anos), foi conduzido, em entusiasta campanha, à Câmara Estadual (hoje, Assembléia Legislativa), nas eleições de 24 de fevereiro. Foi reeleito na legislação subseqüente, quando abandonou inteiramente a política, para consagrar-se ao cultivo das letras. A partir desse instante de sua vida literária, passou a dedicar-se à romanceação dos episódios mais interessantes da História do Brasil. Não chegou a se destacar como político. Era mais poeta e literato do que propriamente legislador. Suas qualidades, todavia, levaram-no a participar da Comissão de Redação da Câmara, sendo também, Orador Oficial da mesma. Alguns discursos notáveis marcam essa fase: a longa fala sobre a proclamação da República, por ocasião da morte do Marechal Deodoro da Fonseca. Quando do falecimento de Júlio Mesquita, Paulo usou também da palavra num memorável elogio póstumo. E, à guisa de curiosidade, convém lembrar que, embora amigos, Júlio Mesquita e Paulo Setúbal eram acirrados adversários políticos. Manifestou-se ainda, Paulo, sobre o poder judiciário, protestando contra a ausência dos Juízes nas respectivas comarcas; ausência estimada, segundo ele, em 30%.
Fez ainda proposta de regulamentação do exercício da advocacia por parte dos chamados rábulas. Contudo, mais do que a política, atraía-o a vida no campo, os momentos de recolhimento, e os monólogos, tendo como confidentes a pena e o papel, longe das chamadas "falcatruas" que aparecem no corpo da quintilha, provando o quanto lhe custava trocar a vida pela agitação da cidade grande:
"Deixar o campo, as charruas,
todo este encanto rural,
para entediar-me nas ruas,
sabendo as vis falcatruas
que fez o Ministro tal..."
(excerto do poema Despedida)
É de se notar, que as falcatruas nos altos escalões da República não são, infelizmente, mal de uma determinada época, mas, essa calamidade permanece crônica a corroer as forças vitais do país, a empobrecer o povo sofrido, em proveito da minoria inescrupulosa. A alma sensível de Paulo Setúbal não poderia se enquadrar num cenário que se opunha às lhanezas do seu caráter.

Sua saúde sofreu uma recaída. Logo depois, em 1930 (aos 37 anos), viajou para a Suíça onde sofreu delicada intervenção cirúrgica tentando melhorar as condições do seu pulmão enfermo, sob os cuidados de famoso médico especialista.

Em 1935 (aos 42 anos), ingressou na Academia Brasileira de Letras, onde ocupou a cadeira número 31. Foi ainda membro da Academia Paulista de Letras, do Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo, do Instituto Histórico e Geográfico de Ouro Preto e Instituto Histórico e Arqueológico de Pernambuco. Este ano, que foi excepcional para Paulo Setúbal, finalizou com muito sofrimento. Na véspera do Natal, o mal visitou-o de forma violenta. A luta física contra a moléstia, a luta moral, a prece, a angustia de perder sua alma, a humildade sucederam-se em sua alma dilacerada. Em maio de 1937, seu estado de saúde piora cada vez mais, vindo a falecer às 4 hs. da madrugada do dia 4, aos 44 anos e 4 meses, após receber a extrema-unção (CONFITEOR, 1938, p. 237).

         Em sua obra destacam-se A Marquesa de Santos (1925), O Príncipe de Nassau (1926), a peça de teatro Um Sarau no Paço de São Cristóvão (1926), e coletâneas de contos históricos e ensaios, como As maluquices do Imperador (1927), e O Ouro de Cuiabá (1931). Em 1933 lançou Os Irmãos Leme e, no ano seguinte, El Dorado, publicando O Sonho das Esmeraldas em 1935. Seu último livro,  Confiteor (Latim “eu confesso”), foi publicado em 1938, postumamente. Em 1950 surgiram suas Obras Completas, em 13 volumes.

 

Fontes


Esta pequena biografia, bem como a foto, foram obtidas e adaptadas a partir do conteúdo publicado nos sites de estudiosos do escritor e sua obra, encontrados pelo autor desta tese na internet: www.paulosetubal.hpg.ig.com.br/index.html, e www.bignet.com.br/homes/capua/pauloset.htm, baixados no dia 08 de janeiro (quarta feira) de 2003.

 
CONFITEOR
(parte)

Cópia realizada a partir do original publicado – 6a. edição, 1938 -, respeitando-se os sinais, os formatos (itálicos, etc.), as divisões, mas corrigida aqui a grafia vigente à época. Relata o comentador final da obra - o mesmo do prefácio, Pe. Leonel Franca, S.J. - que o texto, de 238 paginas, escrita no ultimo ano da vida de Paulo Setúbal, foi encontrado “no fundo de uma gaveta, em rascunho, sem correção”, sendo compiladas então postumamente, sem qualquer alteração. A indicação da página à esquerda (entre parênteses) refere-se à posição do texto no livro utilizado nesta tese.



CAPITULO I
(pág. 11)

         25 de Outubro de 1936 – Há emoções que abrem talhos incicatrizáveis na alma da gente. Eu tive ontem uma dessas emoções. Pensei em escrevê-la. Escrevê-la, é preciso que eu o diga, não para que o mundo a lesse, mas tão somente pelo gosto de guardar comigo, fresca e viva, uma das passagens mais comovedoras da minha vida. Mas refleti melhor. Porque não haveria o mundo de ler a pagina que eu me propunha escrever? Não havia aí desdouro, nem vileza. Ao contrario. Havia nela, embora tímido, embora sem relevo, um ensinamento aos que fraquejam. Mais acertado pois andaria eu se, ao invés de escrever apenas uma, escrevesse outras e varias paginas que, enfeixadas, formassem como que um caderno das minhas notas intimas, notas vividas, notas humanas, as quais pudessem um dia (quem sabe?) vir com proveito a lume. Vir a lume como uma espécie de confiteor. Confissão publica. Confissão da minha vida passada e da minha vida nova. Porque não?

         A minha vida, é certo, nada tem de grande, nem de brilhante, nem de singular, que mereça letra de forma. É uma vidasinha como mil outras. Mas pode ser que, não por uns pequeninos e frágeis êxitos que teve, mas pelos seus altos e baixos, pelas suas quedas e soerguimentos, pelo fadário terreno tão rudemente cortado, pelos pedaços agoniantes de que se entreteceu, pelas longas e longas horas passadas enfadonhamente na cadeira de lona, horas que a revolta antigamente amargava, horas hoje tão alegremente e tão levemente suportadas, pode ser que esta minha obscura vida de doente sirva acaso de lenitivo e de soerguimento a algum desconhecido irmão de infortúnio que, com o seu impotente desespero, arraste, por essas estações de cura afora, dias excruciantes de amargor e de sucumbimento. Essa idéia, pois, só essa idéia deu-me animo a que, vencendo desalentadoras canseiras, eu me atirasse Deus sabe como! a esse trabalho que os meus olhos não verão em livro. Eis porque, de hoje em diante, principio a lançar nestas folhas umas recordações. Recordações em que não haja preocupação de estilo. Nada de polimento de frase, nada de literatura. Que o meu pensamento brote espontâneo do coração e tombe sincero da pena. Que este caderno não seja outra cousa senão a desenfeitada confissão de como, através do sofrimento, eu me cheguei totalmente ao Cristo. Cheguei-me ao Cristo e sou feliz.

*  *  *

         26 de outubro de 1936. Hoje, aos quarenta e três anos de idade, olhando longamente para trás, olhando para esse caminho que percorri com o peito mordiscado de apetites, olhando para essa minha calorosa juventude crivada de tontices mundanarias, averiguo com nitidez que há no meu passado um sinal indissimulável, gritante, de certa mão desconhecida, mas mão poderosa, que me conduziu visivelmente à paz repousante em que hoje se aninha o meu coração. Quero dizer: mão desconhecida e poderosa que me conduziu, não através de deleites, nem através de rosas, mas através de ásperos e pedrentos caminhos, à presença amorável e apaziguadora do Cristo. Porque eu, ao cabo de bem longa e de bem lancinante provação, eu me encontrei afinal com o Cristo. Faz um ano, amigo, que me encontrei realmente com o Cristo. Minha vida, quando eu o encontrei, havia sido golpeada pelo destino com selvagem ferocidade. Eu era um imenso sofredor. Um vencido. Trazia os olhos embaciados de lagrimas grossas. Hora dura foi aquela hora da minha vida. Naquela hora dura, contudo, o Cristo apareceu de improviso no meu caminho. Parecia um homem como os outros homens. Nada de extraordinário. Mostrava apenas o aspecto cansado de quem caminhara muito. Vestia-se com pobreza, tinha o ar doce, as mãos eram calosas, as vestes vinham empoeiradas do comprido jornadeio. Ele pôs em mim os seus olhos. Dois olhos grandes e complacentes. E quando os seus olhos, grandes e complacentes, pousaram nos meus olhos, que iam embaciados de lagrimas grossas, Ele parou de súbito em meio do caminho. Parou e disse: “Bem-aventurados os que choram porque eles serão consolados”. Bem-aventurados os que choram... Que esquisita palavra e singular promessa! Bem-aventurados os que choram... Aproximei-me um pouco mais do viajeiro. Eu estava nesse instante muito sucumbido. Eu estava extenuado e desbaratado pelo sofrimento. Ele reparou no meu sucumbimento e no meu desbarato. E disse: “Vós que andais afadigados, vós que gemeis sob o peso dum fardo pesado, vinde todos a mim. Eu vos aliviarei”. Acerquei-me com sofreguidão do homem que prometia aliviar-me. Ele continuou: “Tomai o meu jugo sobre vós; aprendei de mim que sou manso e humilde de coração; e achareis descanso para as vossas almas. Porque o meu jugo é suave e o meu peso é leve”. Ouvindo-O, eu, na minha angustia, toquei-Lhe com as mãos tremulas a ourela do vestido. E perguntei-Lhe ansioso: Quem sois Vós? Ele me disse: “Eu sou o caminho, a verdade e a vida”. Que acento o acento daquela voz! Nunca homem nenhum falou como aquele homem. Cheguei-me totalmente a Ele. Sentamo-nos um ao lado do outro. Conversamos. Eu vi, sem detença, que me havia encontrado com o amigo de que carecia. Com o amigo que é hoje o meu melhor amigo. O amigo supremo. O único amigo certo na hora incerta. Depois que O conheci, depois que O fitei de perto, depois que Lhe segurei as mãos, depois que Lhe falei confiadamente, tudo, absolutamente tudo, mudou na minha existência como por encanto. Ele, quando me sentiu assim mudado, homem novo, quis entrar na minha morada. Eu Lhe disse: Senhor, a minha morada está arruinada e velha. Eu não sou digno de que entreis na minha morada. Mas Ele não me ouviu. Veio. Entrou. Viu o desmantelo da casa, o encardido das paredes, o bafio das alcovas, a sordicia do madeirame. Mas com Sua presença, só com a Sua presença, a lôbrega casa carcomida, refes-se de pronto. E ficou linda, linda. A um gesto dEle, um gesto só, perpassou logo por ela o ar oxigenado e fresco da saúde, iluminou-se tudo de ouro vivo, luziu o sol esbanjadamente pelos cantos mais escuros, e, como Ele gosta das aves do céu , que não ceifam nem colhem, Ele, na sua ternura, soltou um bando de canários a gorjear com alegria no beiral da casa velha; e, não contente com essa festa do meu coração, Ele, que gosta das florinhas silvestres que não tecem nem fiam, enfeitou a minha morada de lírios do campo, daqueles lírios que se vestem tão esplendorosamente, tão esplendorosamente, que nem mesmo Salomão, em toda a sua gloria, não se vestiu jamais como um só deles. Desde então, desde que há lá dentro, na casa refeita, essa saúde, esse sol, essa festa, essas flores, esse bulício cantante de pássaros, a felicidade veio com as suas leves azas de seda, tecer silenciosamente o seu ninho fofo sob o meu teto renovado, mas humilde. E aí vive. Mas que felicidade diferente da felicidade que o mundo sonha! É uma felicidade estranha. Felicidade que os homens, correndo atrás de delicias e voluptuosidades, nem sequer suspeitam que existe. Felicidade que é feliz na ventura, mas muito mais feliz na desventura. Felicidade que é feliz na alegria, mas muito mais feliz na tristeza. Felicidade que é feliz nas horas de doçura, mas muito mais feliz, infinitamente mais feliz, nas horas de sofrimento. Sim, nas horas de sofrimento. Porque o sofrimento, meu pobre irmão da cadeira de lona, o sofrimento é dádiva do céu. Essa palavra, é certo, já foi dita mil vezes. Não importa. É preciso repetir ainda, repetir sem cessar, repetir a vida inteira: o sofrimento é dádiva do céu. É tesouro que nem todos têm a dita de possuir. Foi pelo sofrimento que eu conheci de perto o meu Amigo. Aquele que reconstruiu a minha morada. Ele se empenhou sempre, com amorável tenacidade, a que eu me chegasse a Ele através dos reveses que me mandou. Verifico-o, hoje, claramente. Pois, ao volver agora os meus olhos para o caminho percorrido, vejo que tive ao longo dessa minha jornada alguns pobres triunfos que outrora me enlevaram. Mas nos momentos exatos desses triunfos, nos momentos em que, por circunstancias varias e em varias ocasiões, parecia que o meu destino ia alar-se a sucessos ainda maiores, eis que um golpe adverso, áspera vergastada dos fados, matava no seu nascedouro, sem dó, a vitória que despontara ontem. Essa vergastada era sempre uma doença. Um sofrimento. Esse sofrimento, contra o qual eu, espumando fel, me rebelei tantas vezes de punhos fechados, sofrimento que estrangulava todas as minhas ambições, que arredava com mão de ferro a minha mocidade do mundo vão que eu amava, esse sofrimento que, culminando, terminou por fazer de mim este misero trapo humano que hoje sou, este sofrimento foi — quem jamais soube lá os desígnios secretos de Deus? — o caminho dorido e áspero, mas abençoado, que, fazendo-me ascender do charco às estrelas, levou-me devagarinho, mansamente, para esta doce paz de espírito em que hoje vivo, para este remansado sossego de consciência, e, sobretudo, para esta felicidade — escute-o bem, meu irmão! — para esta paradoxal felicidade de me ver doente, certo de morrer breve, e, por isso mesmo ditoso, serenamente ditoso, porque sinto que fui assinalado pela mão oculta e misericordiosa do Cristo. Há quem não creia nessa felicidade. Eu bem o sei. Mas olhe, meu irmão, meu desconhecido companheiro de desgraça, não dê ouvido a esses. Não dê. Aproxime-se do Cristo! Aproxime-se resolutamente do Cristo. E então você compreenderá, na sua nudeza, a verdade da minha palavra.



CAPITULO II
(pág. 22)

         Outubro... “Há emoções (assim principiava eu estas lembranças) há emoções que abrem talhos incicatrizáveis na alma da gente. Eu tive ontem uma dessas emoções. Pensei em escrevê-la”. Hoje, porém, vou retomar o fio da historia começada. Vou contá-la aqui tal como aconteceu. Sei bem que os ledores das paginas violentas da vida, hão de certamente escarnecer desta minha ingênua pagina. Não faz mal. Não é para os ledores de paginas violentas que eu estou escrevendo. Eu estou escrevendo para as almas que a feiúra do mundo ainda não encoscorou. Para aqueles que ainda têm fibras enternecidas no coração. Esses, acredito, lerão “sentindo” o que aqui vai, e, portanto, lerão com ternura este meu conto. Conto? Pois não, meu amigo; conto. Porque é, apesar de totalmente verdadeiro, um conto o que vou botar debaixo dos seus olhos. Conto que tem mesmo um titulo. Poder-se-ia chamar: “Conto de Natal”. E esse conto principia por um apressado bilhete que escrevi a bondoso padre, amigo muito amado.
25-10-36
“Meu estremecido amigo:

    Ontem, sábado, fiz o sacrifício. Em vês de os entregar ao editor, que estava à espera, atirei ao fogo os originais do meu romance. Eram trezentas paginas. Uma pequenina fogueira os devorou em brevíssimos instantes. O meu labor de todo um ano (labor bem duro e bem suado, confesso-o) reduziu-se assim a uma pouca de cinza que o lixeiro carregou. Ainda bem. Aquelas paginas cruas tiveram o destino que convinha a paginas sem Deus. Estou contente. Louvado seja Nosso Senhor Jesus Cristo!
P. S.”

         É verdade, amigo: queimei um romance. Trezentas paginas bem cheias. Trezentas paginas que deviam entrar naquela semana para o prelo. Era o meu primeiro livro de pura fantasia. Durante um ano, um comprido ano de fadigas, eu, como um lavrador turrão que enfia o arado em chão duro, vivi de pena em punho a arrotear teimosamente a minha novela. Não sei, meu amigo, se você acaso já escreveu um livro. Não escreveu? Pois então você não sabe o que de angustias significa, para o autor, o livro que ele realizou. Bom ou mau, brilhante ou chocho, pouco importa, o livro é sempre é para o seu criador, quando ele o termina, uma obra prima. Escritor não há, em se prezando, que não dê tudo o que possa dar á obra que está elaborando. Esse tudo, é verdade, pode ser pouco. Talvez fosse esse o meu caso. Que monta lá isso? Muito ou pouco, ele dá tudo o que pode. Eis porque a obra dum escritor, cujos andaimes foram penosamente erguidos, cujos andaimes o leitor jamais viu, isto é, tramar, criar os personagens, acentuar-lhes os contornos, fazê-los agir, fazê-los falar com naturalidade, pintar o ambiente, ajeitar aqui, aparar ali, realçar acolá — a obra dum escritor honesto, por pequena que seja, significa sempre um estirão pungente de sonhos, de canseiras, de entusiasmos, de desfalecimentos, de noites mal dormidas. Significa que o escritor viveu, cerebralmente e dolorosamente, por meses a fio, a vida contada no papel. Aquele meu romance (chamava-se O FILHO) custou-me bastante. Dei a ele tudo o que podia dar. Comecei-o e acabei-o ao tempo em que meu espírito ainda não se voltara para as cousas altas. Na minha juventude, como todos os rapazes de minha geração, eu li com sofreguidão e, mais do que sofreguidão, com deliciado encantamento, uma vasta literatura em que não entrava Deus. O meu romance outra cousa não era senão um reflexo dessas velhas leituras. Tomei alguns heróis, assoprei neles paixões despeiadas, fiz essas paixões desencadearem-se ao longo de trezentas paginas. Terminado o livro, caí doente. Foi quando...

*  *  *

         ... outubro. — Foi quando, no meu caminho, eu me encontrei com o Cristo. Foi quando eu me encontrei com aquele viajeiro estranho, de olhos grandes e complacentes, que se apiedou de mim. Ah quantas vezes ouvi soar, na amarga solitude do meu quarto de doente, consolando-me e alevantando-me a sua palavra soerguedora e profunda! “Eu fui enviado para curar os que têm o coração alquebrado”. “Eu não vim chamar os justos; eu vim chamar os pecadores”. “Eu sou o pão da vida: o que vem a mim não terá fome; o que crê em mim não terá sede” (S. Mateus, 9, 13; S. Lucas, 4, 18; S. João, 6, 35).

         Ouvindo aquela voz, sentindo-a, eu pus-me a seguir, perdido na turba dos que o acompanhavam, aquele homem que assim derramava um óleo tão fino, tão dulcificante, tão fresco, tão cicatrizador, sobre as feridas mais atenazantes e mais intimas dum coração sofrente. E transformei-me. Transformação nas idéias, transformação nos gostos, transformação nas leituras, transformação no modo de encarar a vida. Transformação até mesmo — que se havia de dizer? — na escolha dos amigos. Cheguei a ponto de pensar que eu havia mudado radicalmente. Que eu me tornara o homem novo do Evangelho. Mas era engano. Existia ainda dentro de mim, defendendo-se e debatendo-se custoso de ser estrangulado, um empedernido remanescente daquele homem velho que vivera às soltas trinta anos de vida mundana. E esse resto de homem velho exsurgiu do fundo do meu ser, exsurgiu com todas as suas forças, chamejante, como em combate supremo, nos angustiosos dias em que cogitei da publicação do meu livro. Foi o caso que, levantando-me da cama onde me prostrara a doença, as forças já mais alevantadas, procurou-me certo dia o meu editor, e, com instancia, solicitou-me que lhe desse um novo livro. A tentação era radiosa. Fui buscar, entre meus velhos papeis, o romance que jazia no fundo da gaveta. Reli-o. e o meu primeiro ímpeto, ao relê-lo, foi categórico.


         — Não publico este livro. Absolutamente não publico. Este livro é, tão somente, um livro de paixões más e desgrenhadas. Um livro ruim. Não tem nenhuma elevação moral. Não edifica a ninguém. É livro que um escritor, sendo católico, não tem o direito de lançar a publico. Não, não publico este livro.

         E, de novo, encafuei os originais na gaveta. Nessa noite, porém, dormi muito pouco. A conversa que eu tivera com meu editor não me saía da cabeça. Peguei de excogitar, ao longo dessa vigília, na tolice daquele meu primeiro ímpeto. Na tolice sim. Na imensa tolice daquele ímpeto. Que piegas eu andava! Que maricas! Porque não publicar o romance? Aquilo era carolice de minha parte. Carolice insuportável. Carolice que a doença insuflara no meu espírito abatido. Era preciso reagir. Acabar com aquelas bobagens. Aonde iria eu parar daquele jeito? E varei a noite com pensamentos tais a esfervilharem dentro de mim. Sobretudo, em meio a esses pensamentos, azedando-me, vinha, como estribilho achincalhador, a palavra “carola”. Carolice. Era uma palavra que me machucava a vaidade. Que carolice, Paulo! Que carolice...

*  *  *

         ... outubro. — No dia seguinte, mal me levantei, tomei de novo o romance, reli-o, e, daquela feita, principiei a descobrir qualidades na obra. Grandes qualidades. Houve mesmo cenas que achei belíssimas. Porquê não publicar aquele livro? Que carolice...  Pus-me então, durante alguns dias, a ajustar melhor umas tantas paginas e a retocar uns tantos episódios. Limei aqui, cortei ali, poli o que pude, e, afinal, dei o meu romance como definitivamente acabado. Minha mulher começou a passá-lo a maquina. Minha mulher (é forçoso anotar aqui esse detalhe) trabalhava no quarto de uma filhinha nossa, uma pequerrucha de doze anos, graciosa e loura que estava nesse momento adoentada e de cama. E as copias começaram a surgir. Um capitulo. Dois capítulos. Tres capítulos. Quatro capítulos. Foi quando a minha mulher, com seu marcado bom-senso, ao ver-me aparecer no quarto da filha:

         — Você vai publicar este livro?
         — Vou.
         — Pense melhor. Você mudou muito nestes últimos tempos. Você é hoje um homem crente, um católico praticante. Você vai mesmo publicar um livro como este? Pense melhor.
         — Não seja beata, mulher!...

         Não seja beata, mulher. Era uma frase apenas. Pois as palavras de minha mulher tinham ido diretas ao meu coração. Não seja beata... Eu dizia aquilo com ar superior, unicamente da boca para fora. Da boca para dentro, não. Sentia eu muitíssimo bem a justiça da exprobração. Minha mulher não fizera outra cousa senão repetir, exatamente, aquilo que eu, no primeiro ímpeto, já havia dito com espontaneidade para mim mesmo. Mas eis que soou dentro de mim, rebelada, aquela mesma voz que soara sarcástica ao longo da minha noite de insônia. Que piegas você anda, Paulo! Que maricas! Você não vê que isso é bobagem da sua mulher? Pois a sua mulher lá entende acaso de literatura? A literatura de que ela entende, meu velho, é apenas essa literatura com o ninhil obstat. Livros sobre a vida dos santos. Mais nada. Deixe, portanto, sua mulher falar! E acabe com essa sua carolice. Que você está me saindo um carola de marca, sabe? Um grande carola...

         O romance continuou a ser passado a maquina. Quinto capitulo. Sexto capitulo. Sétimo capitulo. Oitavo capitulo...

         Você vai mesmo publicar este livro? Pense melhor. Eu acho que não fica bem a você, que é hoje...

         Aquela insistência de minha mulher me doía. Sentia claro o ajuizado do que ela me admoestava. Mas não queria ouvi-la. Revoltava-me. Zangava-me. E desencadeou-se dentro de mim uma luta secreta. Luta banal na aparência, meu amigo. Mas luta séria. Luta profundamente séria. No fundo dela, está visto, não se tratava mais da publicação ou não publicação dum simples livro, um romancezinho, que não ia mudar a face da terra. Nada disso. Tratava-se, isso sim, da luta entre o homem que eu fui e o homem que eu queria ser. Entre o homem novo e o homem velho. Luta que poucos compreenderão. Mas luta de que esses poucos, isto os que a conheceram de perto, sabem bem a aspereza e o encarniçado. Pensei, então, antes de ir ao editor, em expor o meu caso ao padre Z. Aquele meu excelente amigo, cujo conselho, sempre firme e reto, tinha sido para mim escudo seguro em hora tumultuada de indecisão e duvida. Telefonei-lhe. Padre Z, sempre bondoso, veio logo ver-me naquele mesmo dia, ao invés de esperar minha visita. Contei-lhe, a sós os dois, o caso que tão violentamente me agitava, “um escrúpulo de consciência, disse-lhe. Creio que não passa de banalidades. Mas o fato é que, com razão ou sem razão, sofro intensa luta diante de mim”. O padre, é claro, não podia orientar-me sem primeiro conhecer o livro. Contei-lhe, pois, capitulo por capitulo, o enredo da obra. Padre Z não vacilou:

         — Deixe o seu livro trancado na gaveta, meu amigo. Não o publique. Um cristão, como o senhor hoje o é, voltado com tanta ânsia para cousas espirituais não deve aparecer em publico com romance assim desordenado. Escandalizaria. O senhor, nestas paginas, diante do publico, é um; na realidade, às ocultas, diante de Deus, é outro. Que diriam leitores seus que o vissem na igreja, que o vissem no confessando-se, comungando e, no outro dia, o vissem lançando nas livrarias um romance desordenado como esse? Não publique o seu livro, meu amigo.

         Eu (curiosa esta nossa natureza humana) eu (sic) fiquei bastante desapontado. O que eu queria, no fundo, era, vaidosamente, encontrar alguém que achasse belo o meu livro, e, por isso mesmo, que viesse em socorro do homem velho que estrebuchava dentro de mim. Mas não encontrei ninguém. Todos contra. O padre Z disse-me ainda:

         — Creio mesmo que o seu romance terá êxito, fará sucesso. É um romance vivo. Mas não se deixe seduzir por isso. Não publique o seu livro.

         E incisivo:

         — Faça esse holocausto ao Cristo!

         Ouvi, aceitei, e, no assomo da hora, deliberei destruir aquelas paginas. Mas foi um assomo apenas. Mal o padre virou as costas, mal eu me vi a sós comigo, pegou de referver no meu intimo uma procela rugidora. Todas as forças subconscientes do meu ser, assanhadas, como que atiçadas por estranha mão, desencadearem-se iracundas contra o padre. E era uma berra só:

         — Este padre é um bobo! Você não vê que este padre é um bobo? É um padre que não conhece nada da vida. Vive no mundo da lua. É um místico. Mas eu não sou místico e nem vivo no mundo da lua. Eu escrevi um livro com os olhos abertos para a realidade. Contei os podres da existência, que eu vi. Os podres andam fermentando aí para quem quiser enxergar. E por isso o padre acha que o meu livro é um livro desordenado. Este padre é um bobo! Absolutamente bobo. Imaginem um pouco se os romancistas, antes de publicar seus romances, fossem todos pedir conselhos aos padres. A literatura estava bem aviada. Não haveria mais romance no mundo ou, pelo menos, os romances ficariam reduzidos a escritos com água de flor de laranjeira.

         Tempestade brava, feio pegão de vento, andava tudo lá por dentro iroso e ululante. É verdade que uma pequenina voz, muito apagada, soava, em meio ao temporal, nos recessos íntimos do meu ser...

         — Porque é que você consultou o padre? Consultou por que acreditava na palavra dele e no critério dele. E que é que disse, afinal, o padre? Disse aquilo que você mesmo já dissera do livro. Disse aquilo que a sua mulher, por sua vez, também já dissera dele. E é inútil estar aí a relembrar autores e mais autores. Todos esses autores de que você fala (eis o ponto) não eram católicos. Podiam escrever os livros que bem entendessem. Mas você, não: você é católico. É ou não é católico? Se é católico...

         A voz não podia prosseguir. Outra, mais enraivada, abafava-a:

         — Católico? Mas católico é uma cousa e carola é outra. Não seja carola, Paulo! Não seja piegas! Destruir um livro de trezentas paginas, que custou tanta canseira, só porque um padre não achou nele cheiro de igreja? Onde está você com a cabeça? Pense um pouco no que vão dizer seus amigos. Todos eles vão caçoar de você. Rir de você. Vão achar você ridículo. Você não tem medo do ridículo? Pois você está sendo ridículo...

         Eu me achei verdadeiramente ridículo. Que carola que eu estava saindo. Que imenso carola! Era preciso reagir. Não havia duvida. Reagir com violência. E foi o que eu fiz. Não dei tento à minha consciência, nem ao que dizia a minha mulher, nem às palavras assentadas do padre amigo. Nada. O homem velho vencera o homem novo. Vencera estrondosamente: eu tomei a deliberação firme de entregar ao editor os originais do meu livro. Deliberação definitiva, cabal, que não admitia replica. Foi um alivio. Aquela atitude clara cortou cerce a minha angustia. Aconteceu o que tradicionalmente acontece depois de ásperas borrascas: calmaria. Fiquei tranqüilo. Fiquei feliz. Tudo, no meu coração, paz e céu azul.

*  *  *

         ... outubro. — Passaram-se os dias. Ao cabo deles, era um sábado, eu estava com a minha papelada pronta para ir à procura do editor. Acordei-me cedo.

         Cedo demais. Ia apenas amanhecendo. Havia um sino que repicava. Aquele repique claro, sonorizando a madrugada, entrou-me alvissareiro pelo coração. Deu-me vontade de assistir aquela missa. Porque? Não sei. Mas deu-me uma grande vontade. Fiz um esforço, levantei-me, fui à igreja. Mais ainda: confessei-me e comunguei. Voltei radiante da igreja. Radiantissimo. Havia pássaros cantando dentro de mim. A manhã era uma festa encantadora para meus olhos. Há quanto tempo que eu, doente, a viver encafuado num quarto, não via e nem sentia o bulício álacre das manhãs citadinas! Que alegria... O ar era fino, a luz doirada, o céu muito azul e muito doce, e apesar do seu “quotidiano”, havia para mim, tão arredado da vida, um claro encantamento na poesia matinal da cidade que se agitava — o verdureiro com a sua carriola, o peixeiro apregoando a garoupa fresca, automóveis, carrocinhas de pão, transeuntes apressados, normalistas de blusa branca a caminho da escola... Tornei para a casa iluminado. Em casa, que bom humor! Conversei com todos, caçoei com todos, ri-me com todos. Tomei do jornal, e, como a minha pequerrucha ainda continuasse de cama, subi ao quarto dela.

         — Como vai filhoca?

         Assentei-me num divã que havia ao pé da cama. Eu estava alegre, sim. Mas a pequena, não sei porque, estava ainda mais alegre. E por isso nós dois tagarelamos com o riso na boca, jovialmente, o coração cheio de sol. Depois abri o jornal e comecei a ler. Mas eis que a pequena, em dado instante, interrompe bruscamente a minha leitura.

         — Papai...

         — Que há, minha filha?

         A menina titubeou, ruborizou-se um pouco, e, a medo, com sua vozita clara e doce:

         — Eu queria pedir um favor para Papai...

         Favor? Mas haveria favor que acaso recusasse à minha filhinha doente? Jamais!
E fui logo exclamando com borbulhante vivacidade:

         — Que favor será esse, Jesus? Vamos lá, filha: diga o que você quer!

         E a minha pequena, que é loura, que tem dois olhos castanhos, dois imensos olhos castanhos e luminosos, a minha pequena disse-me com a maior naturalidade, esta cousa enorme:

         — Eu queria que Papai rasgasse aquele livro que Papai está escrevendo.

         Meu coração bateu descompassado no peito. Olhei a menina com olhos regurgitados de assombro. E não era para menos. Eu podia esperar tudo da minha filha, tudo, mas não podia esperar, jamais, ouvir da sua boca de criança, descuidosa e cândida, um pedido tão serio e tão estonteante como aquele.

         — O que é que você está dizendo aí, menina?

         Ela repetiu com gravidade:

         — Eu queria que Papai rasgasse aquele livro que Papai está escrevendo.

         Não há cor, por mais flamante, que pinte a minha emoção. Como pinta-la? Ouvir, naquele momento, depois de tudo o que sucedera, aquela inocente criaturinha fazer-me aquele pedido, — um pedido daquele jeito! — é, realmente, emoção que tange as cordas mais intimas dum coração de homem. É emoção que fica vibrando a vida inteira na alma da gente. Eu tive, naquele minuto, a sensação viva, a sensação absolutamente nítida, de que ali, na cama, naquela frágil enferma que me falava com sua voz de mel, não estava mais a minha pequerrucha, aquela que eu amava com tão desbordante e tão cálida ternura; estava ali, isso sim, falando pela boca inocente de minha filhinha, um anjo do Senhor, um anjo louro, um anjo fino e leve que, mandado pelo céu, viera, com a força de sua ingenuidade, ajudar o homem novo, ainda tão fraco em mim, a vencer aquele poderoso homem velho que campeava ovante dentro do meu ser. Agarrei as mãos da menina:

         — Mas que idéia é essa, filha? Porque esse pedido? Eu não posso entender, francamente, o motivo por que você quer uma cousa dessas. Escute: você sabe o que diz o romance?

         — Não, Papai. Não sei.

         — Você leu alguns desses capítulos que sua mãe passou a maquina?

         — Não, Papai. Não li capitulo nenhum.

         — Sua mãe, nesse caso, disse a você alguma cousa a respeito do livro?

         — Não, Papai. Mamãe não me disse nada.

         — Então, minha filha? Então? Porque é que você quer que eu rasgue o meu livro?

         — Não sei porquê, Papai. Mas olhe: há uma cousa aqui dentro, aqui bem dentro (e a menina punha a mão com força no coração) que me diz, desde ontem, que Papai não deve publicar aquele livro.

         — Mas minha filha...

         — Eu não sei o que é, Papai. Não sei. Mas é uma cousa aqui dentro. Uma cousa esquisita. E por isso eu quero que Papai rasgue o livro. E quero tanto, tanto, que vou propor um negocio para Papai...

         Um negocio... Não pude deixar de sorrir. Naquela altura, ouvindo o que ouvia, ainda a pequena a propor-me um negocio! Ela continuou:

         — Papai me dá, todos os anos, um presente de Natal. Não é? O presente de Natal, Papai bem sabe, é o presente que eu mais gosto na vida. Pois bem: neste ano, como presente de natal, Papai vai fazer o que eu pedi.

         — Rasgar o livro?

— Sim, Papai...

         Levantei-me de pronto. Levantei-me bruscamente, o coração disparado. As lagrimas a saltarem-me dos olhos aos punhos.

         — Basta, minha filha, basta! Não fale mais! Você ganhou o seu presente de Natal. Papai vai rasgar o romance.

         Corri ao meu escritório, agarrei o maço dos originais, ajuntei copias a maquina, voltei com a papelama ao quarto da filha. E os dois, ali no quarto, picamos em pedaços as trezentas paginas do livro. Logo a seguir, no canto do meu quintal, uma pequena fogueira devorava o montezinho de papeis rasgados. Eu vi, com jubilo, a labareda subir das laudas em tiras. Vendo-a, (que singular é a natureza humana!) fiquei em festa. Radioso. A chama, que rompia alegremente do calhamaço, como que atiçava um fogaréu de contentamento em meu coração. Estava feliz. Havia ganhado um duro combate. O meu labor de todo um ano, é certo, labor bem duro e bem suado, como escrevera ao Padre Z, reduzira-se ali a uma pouca de cinza que o lixeiro carregou. Não importa. Eu estava venturoso. E, na minha felicidade, sem que ninguém reparasse, guardei comigo um punhadozinho daquela cinza. Ocorrera-me, de repente, uma lembrança feliz.

*  *  *

         26 de Dezembro... Tivemos ontem um natal bonito... Natal bucólico, transcorrido em pleno campo, nesta arredada e quieta chácara em que ora vivo. Por isso mesmo, por estar assim apartado do mundo, longe da efervescência das cidades, onde as alegrias do natal são tão calorosas e bulhentas, a festinha de ontem, festinha só nossa e de nossos filhos, teve para mim um sabor novo. Tudo tão intimo, tão aconchegado, tão lindo... Até a arvore, não sei porquê, pareceu-me que foi mais bonita do que a arvore dos outros anos. Que linda que estava! Doía na vista de tanta luz. E tinha bugigangas como nunca teve. E enfeites de prata, e enfeites de ouro, lanterninhas e bolas, e laçarotes de toda a cor. Uma festa. As crianças receberam o presente que pediram. Só a pequena, neste ano, não pedia presente de Natal. Não houve força que a fizesse dizer o que queria. Mas a mãe galanteou-a com um mimo. E eu com outro. Dei-lhe uma bonbonnière. Uma bonbonnière pequenina, de louça barata, cousa a tôa. Ela recebeu a lembrança com viva alegria. Desatou, radiante, a fita cor-de-rosa, desdobrou cuidadosamente o papel de seda e, encantada, topou com a prendazinha desvaliosa. Abriu-a. Mas, ao invés de bombons, como decerto esperava, a menina encontrou lá dentro, com surpresa, um desenxabido punhado de cinza. Compreendeu imediatamente. Olhou-me com um olhar fulgurante. Olhar em que fuzilava a chispa a mais eloqüente. Mas não disse palavra. Acercou-se apenas de mim, beijou-me, e, tremula, abraçou-me com um abraço apertado. Eu disse-lhe a meia voz:

         — Foi este o presente de Natal que você pediu, não foi, minha filha?

         — Foi, Papai.

         E abraçou-me de novo.



CAPITULO III
(pág. 48)

         27 de Dezembro — Minha filha, você não tem ainda idade suficiente para penetrar bem, para penetrar em toda sua extensão, o significado daquele punhadinho de cinza. Aquilo, para você, representava apenas o resto dum livro que seu pai teve a coragem de queimar. Mais nada. No entanto, minha filha, aquele punhado de cinza tinha um sentido bem mais alto do que você pensa. Um sentido que você só compreenderá bem, só compreenderá agudamente, no dia em que compreender bem e agudamente as lições estupefacientes da Boa-Nova, desse livro imenso, o maior de todos os livros, que sublimou o Evangelho. Sobretudo, minha filha, quando você ler aquela pagina tão surpreendedora, que é a entrevista de Nicodemo com Jesus. É uma das paginas maiores do Evangelho. Maiores e mais profundas. Nicodemo, minha filha, homem prestigioso e grave, era mestre em Israel, doutor da lei, rabi com assento no Sinédrio. Ele ouvira falar, como toda a gente, de um galileu moço, trinta anos, chamado Ieschua, que vinha vindo, desde os confins de Zabulon e de Neftali, através das compridas e queimantes estradas da Judéia, a pregar com singeleza uma doutrina singularmente nova. Doutrina que fascinava. Doutrina que homem nenhum havia ainda pregado na terra. No rastro do extraordinário Moço, obumbrada, vinha imensa mó de povo. Eram gentes da Galiléia, de Decápole, gentes de além-Jordão, gentes de Tiro, gentes de Sidonia, gentes de Cafarnaum. Havia ali de tudo. Homens e mulheres do povo, desvalidos e pobres, uns doentes, outros desesperados, outros perseguidos, outros espezinhados, todos eles maltrapidos, todos eles grandes sofredores, todos com fome e sede de justiça. E esse bando, assim roto e miserável, procurava ansiadamente toca-lo, só toca-lo, porque saía d’Ele uma virtude que curava a todos. Ieschua dizia-lhes palavras nunca dantes ouvidas. Fazia-lhes prodígios nunca dantes vistos. Eles ouviam, consolados, a beleza daquelas palavras. Eles apregoavam, fascinados, a maravilha daqueles prodígios. Em Jerusalém, contudo, entre os poderosos, havia apenas desdém, mofa, vitupério, achincalhe, contra aquele empoeirado Viajor que alevantava os humildes. Os triunfadores do dia, os grandes que governavam o povo, os doutores que sabiam a lei, os sacerdotes que ofereciam o incenso atrás do véu do tabernáculo, os cambistas que mercadejavam moedas no Templo, os ricos que gozavam folgadamente as delicias da vida, todos os ditosos da terra, todos esses pobres, lastimáveis ditosos, que viviam na abundancia, no poder, na gloria do mundo, desprezavam o moço galileu. O moço que arrastava após si aquelas turbas ferventes e deslumbradas. Quem era, para gente tão alta, aquele ínfimo rabi de Nazaré? Um roto, um que nascera numa estrebaria, um filho de carpinteiro, herege que trabalhava em dia de sábado, impuro que não purificava as mãos quando comia, lunático que se apregoava “o pão da vida”, blasfemo que se dizia enviado pelo Deus vivo. Enviado pelo Deus, vivo, sim, mas que comia à mesa com os publicanos e pecadores; mas que buscara como discípulo um vil cobrador de imposto, desprezível e escorchador; mas que aceitava ungüento e nardo de meretrizes; mas que não deixava apedrejar as esposas adúlteras; mas que ia, sendo galileu, às terras idolatras da Samaria, e, com desrespeito à dignidade dos seus, quedava-se impudentemente a conversar com as mulheres de Sichar à beira do poço de Jacob. Nicodemo, contudo, Nicodemo, o rabi, impressionara-se fundamente com o que dizia e obrava o jovem caminheiro. E descortinou logo fundo, pelas falas que escutava, tudo quanto havia de belo, de sedutor, de nunca dito, na palavra revolucionaria daquele pasmante mestre de pescadores. E quis vê-lo. Foi procura-lo à noite.

         — À noite?

         — Sim, minha filha. Nicodemo foi à noite, às escondidas, quando a cidade sem iluminação adormecera no seu silêncio. Não queria, o rabi cauteloso, ser visto pelos outros rabi que se sentavam com ele no Sinédrio. Não queria ser visto por aqueles rabis empavonados e arrogantes, de nariz recurvo, barbas negras e lustrosas, que traziam filaterias de franjas longas, buscavam o primeiro lugar nas sinagogas, queriam saudações aduladoras na praça pública, amavam ser chamados de mestres pelos homens. Nicodemo era sutil e ronhoso, minha filha. Nicodemo foi à noite. Foi e conversou com Jesus.

         Essa conversa do filho do carpinteiro e do doutor da lei é, repito, uma das passagens maiores do Evangelho. Maiores e mais profundas.

         Nicodemo:
         — Mestre, sabemos que és um doutor enviado por Deus para nos instruir; pois só quem estiver com Deus pode fazer os prodígios que tu fazes. Mestre, dize-me: que é preciso fazer um homem pare entrar no reino de Deus?

         Jesus:
         — Digo a ti, Nicodemo, que és mestre em Israel: aquele que não nascer de novo, esse não entrará no reino de Deus.

         Nicodemo, com espanto:
         — Como pode, Mestre, um homem nascer de novo, sendo já velho? Poderá, por ventura, entrar mais uma vez no ventre de sua mãe e renascer?

         Jesus repetiu:
         — Em verdade, em verdade te digo: todo aquele que não renascer em espírito, esse não entrará no reino de Deus.

         Renascer em espírito... Palavras tremendas! No entanto, minha filha, nada mais certo. O homem, enquanto não enfreia os seus pendores inatos, enquanto é vaidoso, é soberbo, é vingativo, é iroso, é dominador, é odiento, é carnal; o homem, enquanto é apenas voltado para as cousas terrenas, enquanto ama a glória vã, ama o louvor, ama a riqueza, ama o poder, ama as honrarias; o homem assim, minha filha, homem que não tem os olhos virados para os esplendores espirituais, esse homem á ainda o homem velho, o das cavernas, o que não se transformou, o que não se comoveu ante a palavra avassaladora do Cristo, o que ao sentiu a beleza imortal do sermão da montanha, o que não foi sacudido pelo aguilhoante do infinito e não foi tocado pelo anseio da perfeição. Eu fui esse homem, minha filha. Eu fui, durante trinta anos, esse barro chagado de mazelas. Mas o Cristo condoeu-se de mim. Condoeu-se do misero que lhe roçou com humildade a fimbria da veste. Sim, mal lhe rocei a fimbria da veste com minha mão pecadora, eis que irrompeu do Cristo, para alimpar-me, aquele virtude estranha que alimpava os leprosos. Por isso eu queimei aquele livro. Queimei-o, ajudado por você, filha, que foi o inconsciente, o ingênuo, o lírico instrumento de que Deus se serviu para socorrer a mim, que fraquejara. Custou-me fazer aquele gesto. Custou-me rudíssimo combate. Mas eu, afinal,  o fiz. Isto é: venci a mim mesmo. Triunfei.

         Aquela pouca de cinza, portanto, aquilo que foi, filha, seu desenxabido presente de Natal, não significava apenas o resto inútil de um romancezinho sem valor. Significava muito mais. Significava, isso sim, que o homem velho, aquele afrontoso homem sem Deus que havia dentro de mim, tão custoso de arrancar, morrera na labareda que devorara o meu livro. Morrera, filha. O homem novo vencera-o. Eu havia renascido em espírito.



CAPITULO IV
(pág. 56)

         Novembro... — Acabo de ler as paginas que escrevi. E tive a impressão, meu amigo, de que você, quando as ler, ficará certo que se deu comigo um caso de conversão. Conversão? Talvez. Mas não vá imaginar que eu tenha sido um pagão que se converteu. Ou um perseguidor que o raio feriu no caminho. Ou um ateu que se voltou afinal para o Cristo. Ou um herege que se arrependeu com humildade, em boa hora, de suas heresias. Nada. Nem pagão, nem perseguidor, nem ateu, nem herege. Eu fui muito pior do que tudo isso. Muito pior: eu fui um cristão que se converteu ao cristianismo. Acha extraordinário? É, no entanto, a verdade mais verdadeira. Eu me dizia católico. Católico como toda a gente se diz no Brasil. Porque eu, é bom que você o saiba, nasci numa família ferventemente católica e eduquei-me num colégio irrepreensivelmente católico. Fui inúmeras vezes à Igreja. Ouvi inúmeras vezes a missa. Bati inúmeras vezes no peito. Mas que cousa adianta lá, meu amigo, dizer-se homem católico, ir à igreja, ouvir a missa, bater no peito? Que valem, sem o espírito, essas materialidades? Cousa nenhuma. Foi por isso, por não valerem cousa nenhuma, que disse o Cristo aquela rude palavra imorredoura: “Nem todo aquele que me diz Senhor, Senhor, entrará no reino dos céus". Não entrará. Não poderá jamais entrar. Porque é embuste risível, porque é miséria, dizer-se um homem cristão, e, ao mesmo tempo, fugir jeitosamente do parente desafortunado que lhe bate à porta; porque é embuste risível, é miséria, ir de manhã à igreja, compungidamente, mas jantar à noite com mulheres pagas nos restaurantes alegres; porque é embuste risível, é miséria, ouvir a missa nos domingos, mas explorar durante os seis dias da semana o operário que trabalha na fabrica; porque é embuste risível, é miséria, bater no peito diante de Deus, mas estadear diante dos homens, com enfatuamento, a grandeza do seu tom de vida ou a soberba da sua inteligência e do seu sangue. Todos esses vãos, todos esses pobres doidos, mal acreditam, talvez, que “nada há nada encoberto que não venha à luz, nem oculto que se não venha a saber”. Mal acreditam, talvez, que hão de um dia comparecer diante do seu Senhor, para dar conta dos seus atos. “E eu então direi a esses (é o próprio Cristo quem fala com inapelável clareza), então eu direi a esses abertamente: não vos conheço. Apartai-vos de mim. Vós obrastes a iniqüidade”. Meu amigo, você que ora lê esta pagina, recolha-se por um momento. Ponha a mão na consciência. Diga: se você acaso morresse hoje, sem haver meditado com seriedade nestas cousas, não teria medo de ouvir aquela palavra fulminadora: não vos conheço? Pense um pouco. Reflita. Quanto a mim, meu irmão, se eu acaso morresse hoje, não sei o que me haveria de acontecer. Não sei. Tão mesquinho e ruim é o coração do homem! Tão lento é ele no galgar um degrau, por mínimo que seja, acima de sua miséria. Não sei o que haveria de acontecer. Não sei. Mas sei muito bem o que me aconteceria se eu morresse há anos atrás. Sei que o Cristo, que é a Justiça, deveria, para ser justo, dizer-me cerce: “Não te conheço; aparte-te de mim, tu que obraste a iniqüidade”. Sentença tremenda. A mais tremenda, a mais desesperante, a mais esmagadora de todas as sentenças. Mas sentença reta. Porque eu, cristão, eu, nascido numa família cristã, eu, educado num colégio cristão, eu, que cheguei a ser noviço na Ordem Terceira do Carmo (!) — eu não era cristão. Como? É o que eu irei dizendo por meio nestas notas.



CAPITULO V

(pág. 60)


         Tatuí... Guardo no coração, guardei sempre na minha saudade a recordação amorável da minha boa terra natal. Tatuí... Ainda agora, neste momento, ao escrever-lhe o nome selvagem, tenho debaixo dos olhos, enamoradamente, a paisagem sossegada dos seus arredores sem morros, os seus vastos campos espraiados, as suas roças de feijão (...)



CAPITULO XIX
(último capítulo)

(pág. 214)


         Estou de novo em S. Paulo e trabalho fortemente no foro. Circunstancias muito especiais de minha vida forçaram-me a dar com os costados — passageirissimamente, Deus louvado! — em um escritório de advocacia que tem serviço a mais não poder. Há nesse escritório causas de todo jeito. Nunca se recusa aí demanda alguma. Vi então, e hoje vejo mais do que nunca, que não há profissão mais perigosa para uma alma do que a profissão de advogado. Esses homens que lidam com o direito, ao verem, todos os dias, o quanto é falho, e irrealizável, e burlavel o “dar a cada um o que é seu” vão se tornando, com o correr dos anos, de tal maneira céticos, de tal maneira descrentes da justiça, que defendem com a maior sem-cerimônia os que não têm inocência, e, calejados, sem mais peso na consciência, encontram sempre um direito vago para proteger os que não têm direito. Eu vi turcos, que haviam sido mascates de matraca e de baú, turcos de mãos tatuadas, abrirem falência hoje, e amanhã, graças a um advogado bom (!) instalarem-se com grandiosidade na vida. Vi italianos (quantos!) falirem hoje, aparecerem amanhã endinheirados, tornarem a falir, tornarem a aparecer com mais opulência ainda. Para o conseguir, no foro, na casa da Justiça, na mesma casa augusta dessa deusa trata das cousas humanas e divinas (Rerum humanarum atque divinarum scientia!) dão-se as mãos — tão diabólica é a chicana dos homens! — aliadas, proteiformes invencíveis, a ratazanice, a fraude, a velhacaria, a venalidade, a corrupção, a rabulice, e varias outras harpias de unhas afiadas e rapinantes. Um moço que tem esse meio debaixo dos olhos, mesmo que, providencialmente, não lhe suceda a desgraça de chafurdar nele, é um moço que renteia o abismo. Renteia o abismo, sim. É a expressão. Para mim, sobretudo, para mim que perdera a fé, que vivia sem Deus, com o coração enfebrecido pela só ânsia de ganhar dinheiro, para mim aquele momento foi (hoje eu o sinto nitidamente!) o momento em que eu, de fato, renteei muito de perto o abismo o mais perigoso de minha vida. Não porque eu, pecador que amava o pecado, o merecesse. Não. Deus teve certamente piedade de mim, o ingrato, porque havia na terra uma ignorada mulher, viúva desvalida, uma pobre velhinha, rezadeira e corcovada, minha mãe, que passava horas a fio, diante do oratório do seu quarto, a suplicar com a calorosa simpleza de sua fé, pelo filho arremessado ás cegas nos caminhos tortos da existência.


         E Deus escutou minha mãe. Oh, se escutou... Tenho certeza que escutou. Pois foi Ele, na sua complacência, quem mandou um anjo do céu, fino e doce, a salvar com a sua pureza o filho da pobre velha humilde. Esse anjo foi a minha noiva. Sim, amigo, enquanto eu estroinava pelas vilezas do mundo, enquanto eu me rojava às tontas por tanto atascadeiro poluidor, lá estava no seu colégio de freira, escondidinha, sem que o mundo a conhecesse, uma graciosa menina, frágil e tímida, que viria a ser na vida minha poderosa soerguedora. Aquela que viria com a sua ingenuidade, com a brancura de sua alma, com a sua vencedora pureza lirial, tocar e reformar o meu coração endurecido e conspurcado. Aquela que, oh estranhos desígnios de Deus, estava destinada pelos fados a conduzir-me de novo, com as suas mãos de seda, amorosamente e ardorosamente, aos pés de Cristo que perdoa tudo.

(fim)

Conclusão da Tese



Conclusão


De que o homem precisa, não é somente colocar de modo infalível as últimas questões, mas precisa igualmente do sentido para o factível, o possível e o correto, aqui e agora.

A compreensão não se satisfaz então no virtuosismo técnico de um “compreender” tudo o que é escrito. É, pelo contrário, uma experiência autêntica, isto é, encontro com algo que vale como verdade. H-G GADAMER, V&M, p. 28 e 706


Pretendi nesta Tese, em primeiro lugar, realizar a descoberta da própria Hermenêutica, enquanto aplicada à análise da conversão religiosa. O Capítulo I e notadamente a primeira seção do Capítulo IV apresentam as intelecções pertinentes a minha empreitada inicial. Aprendemos que o modo de ser do homem constitui-se em compreensão, realizado via linguagem, ou seja, a lingüisticidade da compreensão é inerente ao ser do Homem. Esta situação determina a postura do mesmo frente ao mundo, significando mundo humano. O processo hermenêutico, principalmente, consubstancia-se organicamente como diálogo, como dialética de perguntar e responder, uma dialética de pergunta e resposta entre intérprete e texto. A experiência hermenêutica é eminentemente uma experiência lingüística, e tem o mesmo arcabouço da experiência histórica: o discurso humano é finito no sentido de que nele existem sempre uma infinitos sentidos a captar, a interpretar, portanto infinitas compreensões.

Em segundo lugar, esta pesquisa visou aumentar os horizontes de compreensão da natureza do processo psicológico da conversão, realizado principalmente a partir do estudo hermenêutico de uma narrativa escrita. Os resultados estão relatados no Capítulo II e em especial nas seções intermediárias e finais do Capítulo IV. Observamos que o fenômeno da conversão constitui um processo que se espraia ao longo do tempo, não se reduzindo a um evento singular. Este fenômeno é contextualizado e, portanto, influencia e é influenciado por um tecido de relacionamentos, expectativas e situações as mais variadas. Seus fatores constituintes são múltiplos, interativos e, principalmente, caracterizados como cumulativos. Enquanto fenômeno humano, não existe causa única para sua ocorrência. Conversão constitui-se num evento e num processo, mas não existe um único processo e não existe uma conseqüência isolada ou única como resultado deste complexo processo. Por fim, sabe-se que não se pode predizer com acurácia seu percurso, e que pode ocorrer reversões.

         Para se realizar a compreensão de uma conversão religiosa, é mister que se proceda primacialmente a uma análise interpretativa, pela dimensões especificamente humanas (querendo dizer lingüísticas) envolvidas. E, no tocante ao conceito, ao fenômeno em si, considero que a análise tanto da vivência (no sentido gadameriano) quanto da Personalidade devem assumir papel preponderante no estudo do fenômeno.

Por fim, como terceiro objetivo, almejei ampliar os horizontes de compreensão da aplicação da abordagem hermenêutica à psicologia da conversão religiosa. Tais achados estão relatados principalmente na terceira seção do Capítulo III e nas terceira e quarta seções do Capítulo IV.  Auferi, de um lado, que o pesquisador deve se imbuir de características de pesquisas que se coadunem com o espírito da análise hermenêutica, tais como a abertura a diferentes projetos e significados, o rigor nos procedimentos e cuidados na abordagem de narrativas, de textos, a propensão ao diálogo, além da persistência. De outro lado, cotejando a abordagem hermenêutica com a descritivo-empiricista, vimos como a abordagem de análise tem como a tendência de ‘condicionar’ os resultados – efetivamente ‘vemos’ e ‘dizemos’ o que a situação de estudo, de análise, predispõe, isto porque “... aquele que pergunta busca uma confirmação direta de suas próprias suposições” (GADAMER, 2002, p. 392).

Uma grande aquisição de minha parte foi sem dúvida o encontro com o conceito de circulo hermenêutico, que significa, no domínio da compreensão, que não se pretende deduzir uma coisa de outra, mas que constitui a descrição adequada da estrutura do compreender. Esta expressão indica precisamente a estrutura do ser-no-mundo, ou seja, a superação da divisão entre sujeito e objeto na analítica transcendental da pré-sença. O ponto-chave do círculo, a linguagem, nesta perspectiva, nunca é utilizada pelo pesquisador como mera ferramenta; se ele se dispõe realmente a conhece-la como meio, não a converte em objeto mas, como ensina Gadamer, trabalha com ela. Assim também o compreender, que permite à pré-sença conhecer-se em seu ser e em seu mundo, não é uma conduta relacionada com determinados objetos do conhecimento, mas seu próprio ser-no-mundo.

         Ao reler a Tese e seus capítulos, constato que voltei não poucas vezes a certos conceitos que já havia mencionado. Refletindo sobre esta expressão vejo que realizei uma certa postura que existe nos textos de Gadamer. A repetição de conceitos, o constante re-dizer também é hermenêutico, no sentido de demonstrar constantemente a totalidade que erige o sentido das partes (que precisamente constituem o todo, mas que recebem seu sentido somente em relação a ela). Agora entendo porque muitas vezes me vejo (e dizem que sou) ‘redundante’, repetitivo. Agora não vejo mais isso necessariamente como imperfeição.

Termino este trabalho grandemente recompensado, mas acompanhado de um certo desconforto, por ter ‘deixado de lado’ teóricos que desconfio teriam muito a contribuir para esta discussão. Entre eles, cito Viktor E. Frankl, com sua logoterapia. Meus trabalhos futuros em Psicologia da Religião (seguramente utilizando a abordagem hermenêutica) se encaminham para o exame de outros aspectos que podem tomar parte significativa no fenômeno da conversão, como a intencionalidade, que cheguei a identificar em algumas passagens desta monografia.

         Finalizo com uma citação daquele que me ajudou tanto a descobrir novos caminhos quanto a corrigir muitos defeitos (obviamente ele não é responsável pelas imperfeições remanescentes). Ela é, apesar de pinçada dentro de um contexto maior, rica em significado, ilustrando a propriedade do emprego da hermenêutica no campo da religiosidade, como eu imaginei a princípio. (negrito meu)

         A linguagem religiosa tenta essa proeza quase impossível: não só falar do mistério, mas também falar ao mistério. E depois ouvi-lo. É isso que ela é quando corresponde a um processo pessoalmente vivenciado...” (AMATUZZI, 2003, p. 70).