Memórias, comentários e meditações ocasionais de ex-professor universitário (aposentado) Bücherwurm.
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A V I S O
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tornar-se um ser espiritual. H-G GADAMER, V&M, p. 51
Como e porque as pessoas se convertem? Como vimos na Introdução, nas décadas recentes houve uma espécie de renascimento da vitalidade religiosa, em âmbito mundial, que se mostra perseverante. Antes desta época, muitos cientistas sociais e até teólogos fizeram erroneamente predições sobre a secularização da sociedade, tendo algumas pessoas prenunciado a morte de Deus. O poder da religião reafirma-se em muitas partes do globo, como fenômeno pessoal e coletivo. As diversas expressões deste ressurgimento da vitalidade religiosa (p. ex. a expansão do Islamismo, o movimento carismático e dos teólogos da libertação, os novos movimentos religiosos) têm estimulado estudiosos de várias disciplinas a reexaminar a natureza do processo de conversão, algo que, historicamente, sempre desafiou os pesquisadores. Pretendo agora descrever a natureza do processo de conversão, fixando o seu conceito.
Este Capítulo compõe-se de cinco seções. No primeiro, temos algumas generalidades sobre o tema da conversão, introduzindo sua discussão. Aqui compilei sucintamente, a partir do livro precursor do psicólogo William James As variedades da experiência religiosa, o que é descrito sobre este fenômeno religioso. É um dos principais livros sobre a experiência religiosa no campo da Psicologia, e os conceitos ali reunidos são fundamentais para a historicidade da idéia de conversão. No segundo momento, aponto outras idéias a partir de alguns estudos contemporâneos sobre o tema. No terceiro, inicio a discussão da natureza do fenômeno humano da conversão, apresentando em seguida, na quinta e sexta seção, o Modelo de Conversão religiosa por Estágios, do psicólogo americano Lewis Ray Rambo.
Conversão é um processo de mudança religiosa que parece tomar parte num dinâmico campo de forças onde se mesclam pessoas, eventos, ideologias, instituições, expectativas e diferentes orientações (SNOW & MACHALEK, 1984). Neste pano de fundo, creio que, ao lado de outros ramos do saber que se dedicam ao tema (notadamente Sociologia e Antropologia), a Psicologia pode contribuir na investigação da natureza do processo de conversão, aumentando nosso horizonte de compreensão. No entanto, digo que para aquele que se inicia nos estudos sobre este fenômeno, a primeira impressão é que o mesmo constitui uma espécie de ‘Torre de Babel’. Vejamos rapidamente algumas posições ilustrativas.
Para RAMBO (1993, Prefácio, p. xii), a genuína conversão consiste numa transformação total da pessoa pelo poder divino. Ainda que a mudança ocorra através da mediação de forças sociais, culturais, pessoais e religiosas, ele crê que conversão necessita ser radical, tocando os fundamentos das dificuldades humanas. Este autor afirma que nestes fundamentos reside uma voragem de vulnerabilidade, onde as pessoas, entre outras coisas, se auto-enganam permanentemente e onde suas inclinações naturalmente os afastam de Deus, endereçando destarte uma mudança que pode ser fundamental, difusa e penetrante. Mas nem todos os estudiosos vêem deste modo o fenômeno; existem muitos outros posicionamentos sobre a natureza da conversão.
Num outro enfoque, PARGAMENT (1996, p. 227) relata que um histórico de inquietação, desconforto e stress parecem ser um importante fator que propicia a entrada da pessoa num processo de conversão religiosa. Este autor cita trabalhos onde são discutidos diversos aspectos que precipitariam uma conversão religiosa entre conversos em potencial, tais como níveis elevados de ‘emocional distress’, o surgimento concomitante de diversos eventos negativos na vida da pessoa e longas histórias de conflito e tensão. Entretanto ele adverte que, ainda que importante o aspecto do stress possa ser, não constitui condição suficiente para a conversão, na medida em que muitos não-conversos também reportam altos níveis de ‘distress’. O que surge adicionalmente entre os conversos é um senso de fracasso em justamente lidar com o stress, e com contornos dramáticos no mais das vezes, na medida em que ele demonstra às pessoas de modo trágico os limites tanto da sua energia como da capacidade em esforçar-se consigo mesmo. Render-se, entregar-se e desistir são termos comumente encontrados nas narrativas de conversão religiosa, mas não devem ser confundidos com o estado de total desamparo (como o fenômeno helplessness) ou fatalismo visto que, no caso de conversão religiosa, a pessoa possui, segundo PARGAMENT (1996, p. 228), a quem se render: ao sagrado. O que faz a conversão religiosa é a incorporação do sagrado à identidade do converso, resultando que este reporte um novo senso do self. Muitas vezes esta experiência de conversão religiosa é “acompanhada de alívio emocional, grande auto-confiança e auto-controle, menos separação ou desavença com outros e um claro senso de direção na vida” (PARGAMENT, 1996, p. 231).
Ao se pesquisar o tema da conversão, verifica-se que muitos elementos parecem tomar parte no processo, não podendo ser creditado somente à vulnerabilidade, ou stress, ou intervenção do alto ou qualquer outro aspecto isolado a proeminência ou precedência na sua condução. Parece que conversão exige uma visão da sua totalidade, uma abordagem mais holística, de modo a ter-se melhor idéia do que a constitua. Deve-se proceder a uma catalogação mais detalhada do fenômeno, de modo a facilitar sua compreensão. Neste ponto pode ser útil averiguar o que os pioneiros identificaram sobre o fenômeno. Antes, vejamos o que a palavra significa.
A palavra ‘conversão’ deriva-se do latim convertere, que significa girar, mudar ao contrário, mudar de atitude ou direção. Segundo FLINN (1999, p. 52), o sentido básico liga-se ao hebreu bíblico shub (tornar, retornar) e aos termos gregos strepho e epistrepho. Duas outras palavras gregas no Novo Testamento remetem a nuances de remorso e arrependimento, contrição. A primeira, metamelomai (estar ansioso, pesaroso) descreve o estado da pessoa que se submete, que sofre uma experiência de conversão. A outra, metanoia (mudança de mente, de pensamento), descreve o estado positivo ou atitude daquele que passou por uma conversão. Estas referências lingüísticas sugerem que a problemática há muito preocupa os estudiosos.
Os primeiros estudos sistemáticos sobre conversão religiosa apareceram ao final do século XIX. Uma das obras do período mais citada é o livro de Edward D. STARBUCK (1899), sobre a conversão adolescente. Este autor apontou, nas pessoas em processo de conversão, certos aspectos psicológicos exacerbados tais como, por exemplo, senso de incompletude e consciência de pecado, ansiedade e assemelhados. Estas descrições foram freqüentemente utilizadas para justificar a assertiva de que a experiência de conversão abarcaria alguma espécie de doença mental, em vez de uma mudança em padrões de conhecimento e compromisso em direção a um horizonte maior de elevado interesse (FLINN, 1999, p. 59). Mas esta tendência logo foi suplantada por novas abordagens para a investigação do fenômeno.
Uma das obras mais marcantes que aborda a conversão religiosa sob um novo ângulo (e onde ainda descobre-se interessantes vislumbres sobre o mesmo) é um livro do início do século XX. Trata-se de um dos textos científicos em Psicologia mais conhecidos (e influentes) sobre o fenômeno da religiosidade:As variedades da experiência religiosa, do psicólogo norte-americano William James (JAMES, 1902, 1991). Este livro originou-se de seus estudos e ensaios desde 1893 e das conferências Gifford realizadas pelo autor na Universidade de Edinburg, em 1896. Esta obra representa o ápice do interesse de James na Psicologia da Religião, resultado da sua tentativa séria e rigorosa de reflexão sobre depoimentos e relatos acerca de ampla gama de experiências religiosas. Nesta obra é apontada a existência de vários e específicos reservatórios de energia ‘consciente-símile’ (ou seja, análogo, semelhante ao consciente) com os quais podemos, segundo o autor, contar em períodos problemáticos. Anteriormente ele já havia publicado na área da religião a obra O desejo de crer e outros ensaios em Filosofia Popular, de 1897.
Variedades da experiência religiosa discute em dois dos seus vinte capítulos os aspectos e características principais do que se possa considerar, compreender como conversão religiosa, razão pela qual iremos apresentar um breve resumo. No primeiro, (IX Conferência – Conversão), o autor descreve os contornos e o âmago do fenômeno, que ele identifica como um processo. Os dois tipos de conversão são o volitivo e o da renúncia de si. No segundo capítulo (X Conferência – Conversão – Conclusão) James adiciona às suas reflexões o exame de outros depoimentos, intentando aclarar mais os casos de conversão religiosa “instantânea”, em especial pela importância que esta modalidade de conversão teve na teologia protestante.
Ele inicia suas considerações definindo os termos e o fenômeno.
Converter-se, regenerar-se, receber a graça, sentir a religião, obter uma certeza, são outras tantas expressões que denotam o processo, gradual ou repentino, por cujo intermédio um eu até então dividido, e conscientemente errado, inferior e infeliz, se torna unificado e conscientemente certo, superior e feliz, em conseqüência do seu domínio mais firme das realidades religiosas. Isso, pelo menos, é o que significa a conversão em termos gerais, quer acreditemos, quer não, que se faz mister uma operação divina direta para produzir uma mudança natural dessa ordem” (JAMES, 1902, 1991, p. 126).
Vemos a existência de uma multiplicidade de rótulos e a constatação de um processo de mudança que se opera no converso em potencial, resultando em um estado interno alterado oriundo de (e dirigido a) diferente ‘patamar’ psicológico.
O processo de conversão de uma pessoa pode encerrar, segundo o autor, camadas superpostas de profundas alterações interiores, sem que se possa vislumbrar previamente seu conteúdo. James descreve que se interconectam interiormente no indivíduo as suas idéias, metas e objetivos, organizados em grupos e sistemas por vezes independentes entre si, determinando cada qual preocupações e hábitos diversos. Ao se mudar, aleatoriamente ou não, por entre estes diversos grupos e sistemas; ao se alterar as metas e objetivos no dia-a-dia, não se considera a pessoa “transformada” permanentemente, posto que são, cada uma destas metas, rapidamente seguidas de outras. Isto, a transformação permanente, somente ocorre se uma nova disposição adquirir o caráter de estabilidade tal que expulsa as demais ‘rivais’ da vida da pessoa. James considera que a transformação permanente, a mudança, se for religiosa “nós lhe chamamos conversão, sobretudo se operar-se por meio de uma crise, isto é, subitamente. (...) Dizer que um homem está ‘convertido’ significa, nesses termos, que as idéias religiosas, anteriormente periféricas em sua consciência, assumem agora um lugar central, e que metas religiosas formam o centro habitual da sua energia” (JAMES, 1902, 1991, p. 130). E continua:
Ora, se os senhores perguntarem à psicologia exatamente como a excitação muda de lugar no sistema mental do homem, e por quê metas periféricas passam a ser centrais em determinado momento, a psicologia replicará que, embora possa dar uma descrição geral do que acontece, é incapaz de explicar com exatidão, em cada caso, todas as forças singulares que estão operando. Nem o observador de fora nem o sujeito que sofre o processo pode explicar a contento como experiências particulares mudam o centro de energia da pessoa de maneira tão decisiva, ou por que são tantas vezes obrigadas a aguardar a sua oportunidade para faze-lo. Temos um pensamento ou executamos um ato repetidamente, mas, certo dia, o verdadeiro significado do pensamento ressoa através de nós pela primeira vez ou o ato se converte de súbito numa impossibilidade moral. Só sabemos que existem sentimentos mortos, idéias mortas e crenças frias, e que as há quentes e vivas; e quando uma delas se torna quente e viva dentro de nós, tudo têm de ser recristalizado em seu derredor (JAMES, 1902, 1991, p. 130).
O autor indica a complexidade e individualidade que parece encerrar a vivência do indivíduo, motivada, por exemplo, “por uma nova percepção, um repentino choque emocional...” (ibidem, p. 131) redundando em associações de idéias e hábitos, sendo que estas “influências podem operar subconsciente ou semi-inconscientemente” (ibidem). James relata os achados de um estudioso da Psicologia da Religião, o Professor E. Starbuck (citado acima), da Califórnia, que mostrou, segundo o autor, “como são intimamente paralelas em suas manifestações a ‘conversão’ comum, que ocorre em jovens educados em círculos evangélicos, e o crescimento numa vida espiritual mais ampla, que é a fase normal da adolescência em todas as classes de seres humanos” (ibidem), sendo a idade entre os catorze e os dezessete anos. Relata que os sintomas são os mesmos - sentido de inacabamento e imperfeição; taciturnidade, depressão, introspecção mórbida e senso do pecado; ansiedade a respeito da vida futura; angústia tocante a dúvidas e assemelhados. E o resultado é o mesmo - alívio feliz e objetividade à medida que aumenta a confiança própria através do ajustamento das faculdades à visão mais vasta. Segundo James, “a conclusão de Starbuck a respeito dessas conversões adolescentes comuns parece ser a única bem fundada: em sua essência, a conversão é um fenômeno adolescente normal, incidental à passagem do pequeno universo da criança para a vida intelectual e espiritual mais ampla da maturidade” (ibidem).James classifica os casos de conversão em tipo volitivo e tipo da renúncia de si.
No tipo volitivo a mudança regenerativa, geralmente gradual, consiste na edificação, peça por peça, de um novo conjunto de hábitos morais e espirituais. Mas há sempre pontos críticos, em que o movimento progressivo parece muito mais rápido. Nossa educação em qualquer campo prático faz-se, aparentemente, por safanões e sobressaltos como acontece com nossos corpos físicos (ibidem, p. 136).
No entanto, os do tipo volitivo “são menos interessantes que do que os do tipo de renúncia, em que os efeitos subconscientes, mais abundantes, não raro surpreendem” (ibidem, p. 137). Na conversão do tipo da renúncia de si há duas coisas na mente do candidato à conversão, segundo o autor:
“... a primeira, o inacabamento ou erro presente, o "pecado", de que ele tanto anseia por escapar; e, segunda, o ideal positivo que ele ambiciona levar a cabo. Ora, em quase todos nós o sentido do erro presente é uma peça muito mais distinta de nossa consciência do que o é a imaginação de qualquer ideal positivo que podemos colimar. Na maioria dos casos, com efeito, o "pecado" monopoliza quase exclusivamente a atenção, de modo que a conversão é "antes um processo de lutar para livrar-se do pecado do que deforcejar por alcançar a retidão”. (JAMES, 1902, 1991, p. 137-138). (itálicos do autor, negrito meu)
James identifica o aspecto da crise, que implica deixar o eu consciente à mercê de poderes que, sejam eles o que forem, são mais ideais do que a pessoa é realmente. Declara que a psicologia e a religião concordam sobre a existência de forças aparentemente fora do individuo consciente, que lhe redimem a vida. De um lado a psicologia as define como "subconscientes" e afirmando que os seus efeitos se devem à "incubação" ou "celebração", e supõe que elas não transcendem a personalidade do indivíduo. Por outro lado a teologia cristã considera que elas são operações sobrenaturais diretas da Divindade (ibidem, p. 138-139).
Segundo James, uma conversão súbita pode ser, para quem a experimenta, um “evento real, definido e memorável” (ibidem, p. 147). No auge do acontecimento, a pessoa parece indubitavelmente a si mesmo um espectador ou um paciente passivo de um processo assombroso executado nele desde o alto. Nesse momento, acredita a teologia, uma natureza absolutamente nova é insuflada na pessoa, fazendo-a partícipe da própria substância da Divindade. Os que passaram pessoalmente por uma experiência dessa natureza sentem que isso foi mais um milagre do que um processo natural. “Ouvem-se a miúdo vozes, vêem-se luzes, presenciam-se visões; ocorrem fenômenos motores automáticos; e tem-se sempre a impressão, após a renúncia da vontade pessoal, de que um poder estranho, mais elevado, inundou o íntimo do individuo e tomou posse dele. Além disso, o sentido de renovação, segurança, limpeza, retidão, pode ser tão maravilhoso e exultante que justifica a crença numa natureza substancial radicalmente nova” (ibidem, p. 148).
Na hora da experiência da conversão, algumas aquisições ocorrem para o converso. O primeiro a ser notado é justamente adentrar a um estado de convicção (James prefere este termo ao termo ‘estado de fé’, que alguns de seus contemporâneos utilizavam) cuja característica central seria a perda de todas as preocupações, o sentido de que tudo está finalmente bem com a pessoa, a paz, a harmonia, a “disposição de ser” (ibidem, p. 159), ainda que as condições exteriores permaneçam as mesmas. A certeza da "graça" de Deus, da “justificação", da "salvação", é uma crença objetiva que costuma acompanhar a mudança nos cristãos, mas, segundo James, esta certeza pode estar de todo ausente e, apesar disso, a paz afetiva continua a ser a mesma – “uma paixão de disposição, de aquiescência, de admiração, é o centro luminoso desse estado de espírito”. Outra característica é o sentido de perceber verdades dantes não conhecidas (ibidem, p. 159) , que pode ser, por exemplo, um sentido de novidade, limpa e bonita por dentro e por fora. Existem relatos de automatismo sensorial como p. ex. fenômenos luminosos alucinatórios ou pseudo-alucinatórios, denominados “fotismos”, longe de ser incomuns. A visão celestial cegante de São Paulo parece ter sido um fenômeno dessa espécie, e o mesmo se diga à cruz de Constantino no céu. O mais característico de todos os elementos da crise de conversão é o êxtase da felicidade produzida que, a nosso ver, pode ser considerado como o correlato ocidental da experiência do satori zen-budista, quando da experiência da iluminação (KATAGIRI, 1991, p. 80; SUZUKI, 1990, p. 112).
James encerra suas descrições da conversão discutindo a questão da transitoriedade ou permanência das conversões repentinas. De um modo geral, o que se observa, apesar de ocorrerem numerosos casos de reincidências no erro e recaídas, é que a natureza e a qualidade das mudanças de caráter desloca-se para níveis mais altos. O que importa é que a experiência de conversão mostra ao ser humano, “nem que seja por um breve lapso de tempo” (JAMES, 1902, 1991, p. 165) , o seu ponto culminante da sua capacidade espiritual, — “uma importância que reincidências no erro não podem diminuir, mas que a persistência pode aumentar” (ibidem, p. 165). Na realidade, James testemunha que todos os casos mais notáveis de conversão, todos os que ele citou em seu trabalho, foram permanentes. “As pessoas que passaram pela experiência de conversão, tendo-se decidido, de uma feita, pela vida religiosa, tendem a sentir-se identificadas com ela, por mais que lhes decline o entusiasmo religioso." (ibidem, p. 166).
Após James, outros autores que se ocuparam do tema – e mesmo alguns anteriores a ele - não tiveram a mesma repercussão de seus trabalhos, em grande parte pela escassa novidade que apresentaram para contribuir com o conhecimento mais amplo na área e também pelo interesse (disfarçado ou não) um tanto voltado para proselitismo e divulgação confessional (NOCK, 1933; FERM, 1959). O que parece claro atualmente é que todos estes estudos, marcadamente descritivos e/ou especulativos do fenômeno, realizados por investigadores isolados, captaram diversificadas facetas de um complexo aglomerado, compondo um turvo mosaico.
Estudos contemporâneos sobre conversão
Os trabalhos contemporâneos de (e muitos dos posteriores a) James sobre conversão discutiram algumas variantes e modalidades que podem ser classificadas de modo diverso ao considerado pelo estudo pioneiro, mas sem alterar de modo essencial o que se entendia até então sobre este processo. Uma visão diversa do que este constitui, apresentando uma nova proposta (e também obtendo em seu tempo grande aceitação) foi desenvolvida por James W. Fowler a partir de 1972 (FOWLER, 1992; 1996). Fowler elaborou uma teoria sobre o desenvolvimento da Fé, inspirado pelos trabalhos da vertente desenvolvimentista-estrutural de Lawrence Kohlberg sobre o desenvolvimento moral. A grande novidade desta abordagem é a possibilidade de se integrar os achados de modo a fornecer ao observador um panorama mais claro da natureza do fenômeno.
Fowler concebe que a fé se desenvolve em estágios que descrevem operações padronizadas de conhecer e valorar, subjacente aos processos conscientes. Estes estágios diferenciam-se entre si em relação aos graus de complexidade, de compreensibilidade, de diferenciação interna e de inclusividade moral, precisamente manifestadas nas operações de conhecer e valorar (FOWLER, 1996, p. 169), além dos aspectos da maturação biológica, desenvolvimento cognitivo e emocional, experiência psicossocial e influências culturais e religiosas. Por causa destes últimos aspectos, o movimento de um estágio a outro não é necessariamente garantido ou processado de modo automático. Porém, coerente com a tradição desenvolvimentista-estrutural, os estágios de fé são tomados como invariantes, seqüenciais e hierarquizados, e “as novas características estruturais de cada estágio sucessivo representam uma reelaboração dos conteúdos do estágio de fé anterior” (FOWLER, 1992, p. 225). São eles: o pré-estágio da Lactância (estágio da Fé Indiferenciada), Estágio 1 - Primeira Infância (Fé Intuitivo-Projetiva), Estágio 2 - Infância (Fé Mítico-Literal), Estágio 3 - Adolescência (Fé Sintético-Convencional), Estágio 4 - Início da Idade Adulta (Fé Individuativo-Reflexiva), Estágio 5 - Idade Adulta (Fé Conjuntiva) e, por fim, o Estágio 6 – Fim da Idade Adulta (Fé Universalizante) [1]. Observe-se que pessoas podem situar-se presentemente, por exemplo, num estágio cronológico e maturacional ‘adulto’, mas serem consideradas como situadas estruturalmente num estágio de fé ‘anterior’, como o estágio 3 – Adolescência.
A teoria e a pesquisa de Fowler sobre o desenvolvimento da fé focaliza-se num constructo de fé (este, um traço genérico do ser humano) como um fundamento para as relações sociais, para a identidade pessoal e para a construção dos sentidos culturais e pessoais (FOWLER, 1980; 1991). Para o autor, enquanto que ter crença significa consentir ou aderir a assertivas proposicionais que codificam doutrinas ou pretensões ideológicas de uma tradição ou coletividade particular, fé implica numa dinâmica inconsciente e consciente que abarca tanto dimensões emocionais profundas quanto operações e conteúdos cognitivos (FOWLER, 1996, p. 168). Fé, entendida num sentido mais inclusivo do que o originalmente definido dentro do âmbito religioso, pode ser caracterizada como um processo central e integralizador, subjacente à formação de crenças, valores e sentidos, que (a) dá direção e coerência à vida das pessoas, (b) liga-as às crenças e lealdades compartilhadas com as demais, (c) circunscreve seus pontos de vista pessoais e lealdades comuns como relacionadas dentro de um quadro de referência mais amplo, e (d) possibilita às pessoas resistir e lidar com as condições limitantes da vida humana, contando com o que tange às instâncias últimas das suas existências (ibidem).
Pode-se perguntar aqui o que confere o caráter estrutural da fé, em seus diversos estágios. Seria, para o autor, precisamente os conteúdos da fé. As orientações da fé e o caráter da pessoa são moldados por 3 elementos importantes: o primeiro seriam os centros de valor – causas, preocupações ou pessoas que, consciente ou inconscientemente, têm o maior valor para os indivíduos. As pessoas atribuem o tipo de valor que exige lealdade e comprometimento àqueles centros de valor que dão sentidos às suas vidas. O segundo elemento, as imagens do poder que a pessoa mantém e os poderes aos quais se alinha – num mundo ameaçador busca-se imagens e realidades de poderes nos quais se possa confiar na vida e na morte. Terceiro, as estórias-mestras que as pessoas contam a si mesmas e mediante as quais as pessoas interpretam e respondem aos acontecimentos (FOWLER, 1992, p. 227).
No que tange à conversão religiosa, FOWLER (1992, p. 231; 1996, p. 182) a define como uma “recentralização significativa de nossas imagens de valor e poder anteriores, conscientes ou inconscientes, e a adoção consciente de um novo conjunto de estórias mestras no compromisso de remoldar nossa vida, em uma nova comunidade de interpretação e ação”. Para este autor, conversão enquanto processo, repentino ou gradual (ibidem, p. 234), tem a ver com mudanças nos conteúdos da fé, podendo ocorrer em qualquer um dos estágios de fé que a pessoa se encontre ou em qualquer uma das transições entre estes estágios. Mas, ao que parece, conversão não ocorre necessariamente para poder passar-se de um estágio a outro, não tendo assim um caráter estrutural no bojo deste modelo de desenvolvimento religioso.
Não se alinhando necessariamente às vertentes acima esboçadas, no Brasil têm surgido trabalhos de interessados no tema da conversão religiosa, investigando a natureza do fenômeno e/ou as dificuldades metodológicas inerentes (VALLE, 2002; STADTLER, 2002). Observa-se também que boa parte destes estudos está voltado para a discussão da natureza da adesão de nativos às novas religiões orientais. Estas discussões apontam para as especificidades existentes em solo pátrio, em comparação com outros países que recebem atividades proselitistas de religiões existentes também no Brasil (SHOJI, 2002). Outra linha de estudos investiga como se dá, e se ocorre realmente conversão ou alguma espécie de sincretismo (PAIVA, 1996; 1999a ; 2002). Em suma, conversão constitui uma das mais legítimas expressões da conduta religiosa, plena de significados para a pessoa que a experimenta, e constituindo justificado tema de interesse para o investigador.
Conversão, um fenômeno humano complexo
Quando se pesquisa sobre conversão, um primeiro movimento natural é examinar suas definições, que são abundantes (SCROGGS & DOUGLAS, 1967) e por vezes contraditórias, determinando que sua conceituação continue “enganosa, esquiva” (RAMBO & FARHADIAN, 1999, p. 23). Muitos são os aspectos que podem estar presente quando se procura definir conversão, visto que ela é diferentemente entendida nas diferentes religiões e contextos sociais (LAMB & BRYANT, 1999, p. 6). Na tradição judaico-cristã, conversão endereça à pessoa um chamado extremo, profundo no sentido de abandonar o mal e entregar-se a um relacionamento com Deus mediante a fé. Em outro sentido, estudiosos nas ciências humanas circunscrevem conversão como demonstrado em alterações radicais e súbitas nas condutas, crenças e afiliações dos indivíduos. Não bastasse estas diferentes visões sobre como deve ser abordado o fenômeno, existe dificuldade em especificar adequadamente quem pode determinar o que seja uma genuína conversão, e o que dela faz parte. Por exemplo, se o converso assevera que sua mudança foi sincera e profunda, um agente incentivador ou facilitador (p. ex. um missionário realizando seu proselitismo) ou autoridade pode considerar aquém do que é desejado.
O problema de construir (ou encontrar) uma definição de conversão que seja útil esbarra num aspecto central. As distinções entre algumas conceituações existentes ocorrem visto que as mesmas se propõem a tipificar um modelo ideal de conversão, uma espécie de ‘padrão’, que justamente satisfaça os critérios daqueles que o julgam. Ocorre que poucos são os indivíduos ou situações que se encaixam de modo simples ou ‘puro’ conforme as definições preconizam, pela enorme variabilidade de experiências que se observa na atualidade. Este fato parece retirar muito da utilidade de se estabelecer uma definição neste sentido. Mas para fins de pesquisa é necessário fixar um conceito do que se possa considerar o processo de conversão, ainda que provisório.
Fundamentalmente existem duas abordagens para as tentativas de definir a natureza do processo de conversão, a normativa e a descritiva. Na abordagem normativa, uma conversão verdadeira é formulada de acordo com a convicção teológica de uma particular tradição. Esta tradição determina o que deve ser esperado ou requerido do prosélito para ser válida sua conversão (p. ex. o potencial candidato deve, em muitas tradições cristãs, declarar arrependimento, obediência às leis do Evangelho, considerar Jesus Cristo de modo especial em sua vida e/ou submeter-se a uma cerimônia denominada batismo). Esta alternativa tem o defeito de restringir o escopo da investigação, na medida que tende a particularizar ou até personificar o universo de análise. Para exemplificar, vejamos nos próximos quatro parágrafos como conversão é normativamente definida pelos ‘mórmons’, uma Igreja organizada nos Estados Unidos no início do século XIX, e hoje presente na maior parte do globo. Após, explanaremos sobre a abordagem descritiva.
O termo ‘conversão’ dentro da doutrina de A Igreja de Jesus Cristo dos Santos dos Últimos Dias (Igreja Mórmon) tem uma definição estrita, no âmbito espiritual. Conforme McCONKIE (1996, p. 162-163), um respeitado teólogo mórmon que chegou a ser Apóstolo da Igreja – uma incumbência somente abaixo do Profeta, que é o Presidente da Igreja – , em sentido geral, amplo, conversão consiste em alguém mudar as visões ou crenças para harmonizar com um padrão de pensamento que era inaceitável antes da ocasião da conversão, como está na Bíblia (Atos dos Apóstolos, 3: 19). Porém, para este autor, no sentido mais completo do evangelho, conversão significa mais, muito mais do que meramente alterar a crença do que é falso para aquilo que é verdadeiro; é mais do que a aceitação da veracidade das escrituras ou da aquisição deste tipo de testemunho. Converter-se é mudar de um status para outro, e converter-se ao evangelho consiste na transformação do homem de seu estado carnal e decaído a um estado de santidade.
Um converso é alguém que deixou o estado de homem natural, suscetível ao chamamento do Espírito Santo, tornando-se um santo pela graça de Cristo o Senhor. Na real conversão o converso renasceu de onde estava espiritualmente morto, como parte essencial do seu processo de salvação, como indica, no Novo Testamento, a passagem de Mateus 18: 3. O converso não somente muda suas crenças; altera todo um modo de vida, toda a natureza e estrutura do seu legítimo ser. McCONKIE (op. cit.) cita o apóstolo Pedro como um exemplo de como o poder da conversão opera na alma receptiva. Inicialmente, durante o ministério mortal de Cristo, Pedro sabia da Sua divindade e seu conhecimento veio pela revelação (Mateus 16: 13-19; João, 6: 69). Mas Pedro não era ainda um converso, pois não tinha alterado efetivamente sua vida. Na noite que Jesus foi preso, Ele disse a Pedro: ‘quando te converteres, confirma teus irmãos’ (Lucas, 22: 32). Apesar do seu testemunho, Pedro negou conhecer a Cristo quando questionado (Lucas, 22: 54-62). Depois da crucificação, Pedro foi pescar e só voltou ao ministério quando Jesus ressuscitou (João 21: 10-17). Finalmente, no dia de Pentecostes a investidura espiritual prometida surge na forma de uma manifestação do Santo Espírito, tornando Pedro e os demais discípulos novas criaturas; eles realmente se converteram, o que foi comprovado pelas suas condutas subseqüentes (Atos dos Apóstolos, 3; 4).
Esta conceituação do que constitui ‘conversão’ corporifica o sistema proselitista adotado pela Igreja Mórmon, que procura realizar uma efetiva conversão naqueles que desejam se filiar a ela. A organização religiosa provê recursos e treinamento para todos os envolvidos nesta atividade proselitista, denominada internamente como ‘missionária’. O principal material é um livro utilizado para adestramento das duplas de missionários (de rapazes, de moças e cônjuges) que realizam o proselitismo em tempo integral, de nome GUIA MISSIONÁRIO (1988). Conversão como processo normatizado dentro desta Igreja determina por extensão que todo o trabalho missionário seja também orientado e executado de modo estruturado, ‘formatado’, implicando na sujeição do converso ao que seja justamente o padrão ‘mórmon’ de conversão. Existe adicionalmente várias brochuras, panfletos, gravuras, vídeos e outros auxílios visuais para serem utilizados no trabalho missionário.
O sistema Mórmon de conversão, ao que consta muito eficiente (GREGORY, 1994, p. 49), constitui-se no estabelecimento e acompanhamento da pessoa que percorre quatro momentos, que são ‘facilitados’ ao não-membro da Igreja através da dupla de proselitistas. As fases são, sucintamente (1) ler uma obra padrão da Igreja (O livro de Mórmon), (2) orar pedindo a ajuda do Espírito Santo, de modo a certificar-se da veracidade da mensagem e da necessidade de sua mudança interior, (3) arrepender-se de um modo de vida incompatível com o que preconiza o Evangelho de Cristo, e comprometer-se a observar as normas da Igreja, e (4) batizar-se pela mão de quem possua autoridade para tal. Aquele que deseja aderir à Igreja (denominado de ‘pesquisador’ ou de ‘investigador’ nesta fase) somente pode ser batizado - por imersão total em águas - e assim ser efetivamente considerado ‘converso’, se participar de modo adequado destes quatro procedimentos. Normalmente os missionários são incumbidos de dar 6 palestras na residência da pessoa interessada (ou na capela à qual a residência da pessoa está abrangida), contendo todas as informações necessárias e suficientes para que a pessoa que está ‘investigando’ a Igreja possa percorrer estes quatro momentos e ‘se converter’.
Na abordagem descritiva procura-se descrever os contornos do que se considera conversão, a natureza do seu processo, não sendo tão determinante o que (ideologicamente falando) certo grupo considera. Assim, pode ser averiguada a dinamicidade destes processos de transformação, seja abrupto ou gradual, radical ou sutil em seus efeitos sobre a existência do converso. Nesta linha de raciocínio, delinear os diversos tipos de conversão pode ser um bom início para entender posteriormente o que possa constituir a natureza do processo de conversão. É o que veremos a seguir.
RAMBO (1993, p. 13) modela uma tipologia que procura abarcar o continuum onde variam as características de muitas espécies de conversão. Ele tenta retratar a natureza da conversão em temos de quão distante alguém tem que ir social e culturalmente, de modo a ser considerado um convertido.
Um primeiro tipo seria a ‘apostasia’, ou defecção, onde os membros de uma tradição religiosa passam a repudia-la ou às suas crenças. A mudança não envolve aceitação de uma nova religião e sim, muitas vezes, aceitar um sistema não-religioso de valores. Por exemplo, pode ocorrer que um pai deseje que seu filho se ‘desconverta’ de certa seita ou culto, e para isso emprega técnicas que visam fazer a pessoa perder a fé e deixar determinado grupo.
‘Intensificação’ é um compromisso revitalizado em direção a uma fé na qual o convertido tenha previamente aderido, formal ou informalmente. A pessoa pode, p. ex., estreitar seu envolvimento numa comunidade de fé através de uma profunda experiência religiosa ou mesmo através de transições marcantes em sua própria vida, tais como casamento, nascimento de um filho ou a proximidade da morte.
‘Afiliação’ seria o movimento de uma pessoa ou grupo de um ponto de nenhum ou mínimo compromisso, para um ponto de total compromisso a uma instituição ou comunidade de fé.
‘Transição institucional’ envolve a mudança de uma pessoa ou grupo de uma comunidade a outra de tradição maior. Pode envolver simples afiliação a uma igreja por questões geográficas ou uma mudança religiosa significativa baseada em uma profunda experiência religiosa.
‘Transição de tradição’ refere-se ao movimento de uma pessoa ou grupo de uma tradição elevada para outra de igual posição. Nos últimos séculos a cristandade e o islamismo originaram e se beneficiaram deste tipo de transição de tradição.
Outra abordagem para a variedade de processos de conversão foi proposta por LOFLAND & SKONOVD (1981), onde é pormenorizada a noção de ‘motivos para a conversão’. Esta proposta visa adequar a experiência subjetiva do converso no bojo de uma visão mais objetiva, mais científica, catalogando temas e objetivos dos vários tipos de conversão. Eles argumentam que diferenciações nas descrições e percepções de conversão não são simplesmente o resultado de várias orientações teóricas, mas também descrições de qualidades que efetivamente fazem as experiências de conversão substancialmente diversas. Eles identificaram seis motivos: intelectual, místico, experimental, afetivo, revivalista e coercitivo. Para avaliar as dimensões de cada motivo, deve-se averiguar o grau de pressão social sobre o prosélito em potencial, a duração temporal do processo de conversão, o nível de afetividade, o conteúdo afetivo e resultado da participação na crença.
Na conversão intelectual, a pessoa procura ativamente conhecimento sobre religião ou questões espirituais por meio de livros, artigos, TV, sem envolvimento social significativo; ela explora alternativas e a fé ocorre geralmente antes de qualquer participação ativa em determinada organização.
Conversão mística é considerada como sendo a conversão modelo, como no caso de Saulo de Tarso. Ela é, em geral, uma súbita e traumática eclosão de insights, induzida por vozes, visões ou outras experiências paranormais.
O terceiro motivo, conversão experimental, surgiu como a principal expressão de conversão no século XX por causa da grande liberdade religiosa e da multiplicidade de experiências religiosas à disposição. Envolve exploração ativa das opções religiosas por parte do converso em potencial, havendo encorajamento em averiguar a organização e seus rituais, para daí o mesmo descobrir se o sistema é verdadeiro, benéfico para ele. Em outros termos, o converso em potencial possui como que uma mentalidade ‘São Tomé’, averiguando nas diversas possibilidades o apoio espiritual que possa auferir.
O quarto motivo é o afetivo, enfatizando a ligação interpessoal como importante fator no processo de conversão. No âmbito deste tipo de conversão situa-se central e diretamente a experiência de sentir-se amado, nutrido, estimulado e afirmado pelo grupo e sua liderança.
Revivalista é o quinto motivo, e foi mais proeminente no século XIX do que no século XX, envolvendo a conformidade da multidão, do povo, de modo a induzir a conduta. As pessoas são excitadas emocionalmente e novas crenças e comportamentos são promovidos pela pressão exercida, mormente através de música vigorosa e pregação fervorosa. Adicionalmente à experiência grupal, as pessoas ocasionalmente são acompanhadas por membros da família e amigos que exercem influência direta sobre o converso em perspectiva.
O sexto motivo de conversão é o coercitivo, considerado raro por Lofland & Skonovd. Tem também os rótulos de lavagem cerebral, reforma do pensamento, persuasão coercitiva. Esta conversão é mais ou menos coercitiva dependendo do nível de intensa pressão exercida sobre a pessoa para participar, conformar e confessar. Impedir a pessoa de dormir ou se alimentar pode minar sua resistência à pressão, levando-a a capitular à ideologia do grupo e assim submeter-se a um novo estilo de vida. Medo, tortura física e outras formas de terror psicológico podem ser empregadas de modo a obter controle sobre a vida da pessoa.
A partir de agora, após percorrer, desde William James, vários estudos rigorosos sobre o tema e de ter discutido muitos aspectos pertinentes à conversão, parece que posso identificar uma abordagem que traduza a necessidade de uma visão mais consolidada sobre a miscelânea existente sobre o fenômeno, de modo a constituir-se como um balizador em minhas análises. Na tentativa de fixar o conceito de conversão, vejo que é necessário averiguar em que extensão um modelo poderia auxiliar na análise que irei empregar. Nesse sentido irei agora apresentar o modelo de conversão de RAMBO (1993).
Rambo, assim como outros autores relevantes na área (BARNHART & BARNHART, 1981; GILLESPIE, 1979) reconhece que suas ocupações profissionais e vivências pessoais endereçam muitas vezes de modo apaixonado o interesse sobre o assunto, influenciando de certo modo a investigação. No âmbito pessoal, Rambo conta da sua vivência na infância em uma pequena comunidade denominada Comanche (Texas, EUA), onde possuía amigos Metodistas e Batistas. Três vezes por semana ia à congregação denominada ‘Igreja de Cristo’, uma rigorosa agremiação religiosa, onde desde pequeno sua zelosa mãe o levava, juntamente com o irmão mais novo. Esta conservadora denominação possuía uma noção muito precisa sobre a mudança religiosa. Era dito que a salvação somente era possível pelo atendimento ao Evangelho, pela adoção de um auto-julgamento do mal e pela confissão dos amplos e penetrantes pecados, afirmando a fé em Jesus como Salvador pessoal e pelo batismo em total imersão. Esta Igreja, que proclamava possuir A Verdade, reforçava o conhecimento reto da Bíblia e obediência à vontade de Deus através do comportamento adequado como essenciais, em detrimento de aspectos emocionais como alegria, paz e bem-aventurança.
Este pesquisador, nestes anos de experiências da juventude, fascinava-se pelo fato de existir em sua pequena cidade de quatro mil almas tanta variedade de perspectivas sobre a natureza da salvação (RAMBO, 1993, Prefácio, p. xiv). Porém, o fato de pertencer ardorosamente a uma delas moldava profundamente sua personalidade e o afastava de seus amigos. Para os seguidores da ‘Igreja de Cristo’, a única coisa que parecia eterna era a ameaça da danação, não a salvação. As consolações fáceis e gratificações emocionais das outras igrejas pareciam sedutoras e enganadoras. Mas, perguntava-se, como sua Igreja detinha a ‘verdade’ e suscitava tão pouca alegria nele, enquanto que os Batistas podiam auferir tantas experiências emocionais? Assim, Rambo paulatinamente passou a verificar que não obstante poder ser uma determinada Igreja teologicamente ‘verdadeira’, a comunidade da fé detinha uma influência definitiva na experiência de conversão das pessoas. Havia muitas diferentes experiências neste sentido, e nenhum caminho era obrigatório. Ao final e ao cabo, ele passou a verificar, conversão era o que o grupo, a comunidade de fé dizia que era.
Por outro lado, no âmbito acadêmico, Rambo considera que sua orientação nas ciências humanas também moldou sua abordagem ao processo de conversão religiosa. Seus temas de interesse focalizam-se na adoção da atitude empática, na prevalência da experiência pessoal e na complexidade das dificuldades humanas. De igual modo considera importante a vivência humana individual, situada dentro do percurso histórico de seu grupo, com seu ethos. Em outros termos, afirma que devemos ver nossas vidas, individual e coletivamente, como importantes fontes de informação, insight, experiência e revelação (ibidem).
Rambo, assim como outros investigadores, ainda que se acautele sobre a influência de suas origens e experiências neste assunto, acha prudente advertir o leitor desta inclinação que se mostra inafastável, pela própria natureza do tema. De igual modo, acredito ter deixado claro na Introdução as minhas experiências pessoais e acadêmicas relacionadas a este tema, propondo-me igual escrúpulo.
Outro aspecto que autoriza trazer o modelo de conversão religiosa de Rambo para esta discussão seria o fato de que ele o delineia a partir de entrevistas com conversos de diversificadas origens, considerando insights da psicologia, sociologia, antropologia, história e teologia. Estabelece uma avaliação crítica da conversão religiosa ao redor do planeta, considerando várias teorias, ao examinar o papel de fatores culturais e sociais no processo de conversão. Rambo espera que seu modelo possa expandir os horizontes da interpretação religiosa da conversão, do mesmo modo que os estudiosos das ciências humanas possam averiguar academicamente uma abordagem alternativa para demonstrar o papel crucial de múltiplos fatores religiosos e suas dimensões na conversão (RAMBO & FARHADIAN, 1999, p. 23). Acredito que estes pressupostos do autor e o seu modelo desenvolvimentista são úteis para estabelecer uma discussão sobre a metodologia que empregamos em nosso trabalho.
O Modelo de Conversão por Estágios de Lewis Ray Rambo
RAMBO (1993, p. 16) reconhece que existe grande variedade de abordagens e considerações sobre a natureza da conversão religiosa, e que se pode por vezes ter a sensação de sobrecarga tanto de informação quanto de teoria sobre o assunto. Em sua pesquisa sobre conversão religiosa, ele descreve a situação atual parafraseando a fábula dos dez cegos tentando ‘ver’ um elefante. O estudo sobre conversão configura-se como a situação onde dez pessoas sãs, entrando por portas separadas num quarto completamente escuro – espaçoso o suficiente para conter quase que somente o elefante – e munidas cada qual com um minúsculo farolete, tentam cada uma conhecer como seria o grande animal. A empreitada de Rambo consiste em descobrir o interruptor de luz do quarto que poderia ilumina-lo, juntamente com o elefante – e, julgo eu, os portadores de farolete - de modo que todos os úteis esforços de explanação, todas as descrições fragmentárias poderiam ser integradas.
Mais luz e mais distância poderiam ser ainda mais úteis para se conhecer o que está sob exame. Um modelo heurístico que mantenha este diálogo poderia tomar lugar por meio de estágios, que proveriam uma estrutura para a integração de pesquisas oriundas de várias disciplinas. Seria oferecida condição para um mais profundo e complexo entendimento das muitas faces e camadas do processo de mudança ao longo do tempo. A conversão exibe uma seqüência de processos – muito embora às vezes de forma espiralada – num ir e vir ao longo dos estágios que englobam dimensões múltiplas, interativas e cumulativas (RAMBO & FARHADIAN, 1999, p. 24). Estágio pode ser considerado como um elemento particular ou período ao longo do processo de mudança. Cada estágio possui um aglomerado de temas, padrões e sub-processos que o caracteriza. Determinar como e em qual extensão a literatura atual sobre conversão se ajusta, se amolda nesta estrutura habilitará ao estudioso, segundo Rambo, a ver a pesquisa num contexto maior, revelando áreas onde investigação adicional pode ser necessária.
RAMBO (1993, p. 17) cita os trabalhos de LOFLAND & STARK (1965) e TIPPETT (1977) que forneceram modelos heurísticos úteis para seu trabalho. Rambo propõe adaptações nos modelos de estágios destes autores como estratégia para organizar a complexidade de dados, não como uma ferramenta fixa, constante, ou universal. A metodologia de trabalho que Rambo empregou em seus estudos envolveu (1o) observação; (2o) descrição ‘densa’, conforme preceitua GEERTZ (1973, p. 3-30), como sendo rica, complexa e completa; (3o) empatia, uma tentativa de ver e sentir o mundo do ponto de vista da pessoa ou grupo em estudo que, ainda que imperfeita, permanece como meta valiosa de trabalho. Reconhecer o próprio ponto de vista do pesquisador tanto quanto seja possível e colocar estas tendenciosidades entre parênteses pode libertar o estudioso para se engajar em experiências, pensamentos, sentimentos e ações do converso, promovendo uma capacidade de ver e sentir o mundo ao modo dele (apesar de nunca ser idêntico).
A 4a estratégia metodológica de Rambo envolve a compreensão, atitude que considera central ao estudo da conversão numa perspectiva holística (RAMBO, 1993, p. 19). Seria captar a visão de mundo, experiência e sistema cognitivo da pessoa em escrutínio, utilizando a orientação dela tanto quanto possível para visualizar sua situação vital, esforço que, em si, robustece a capacidade de empatia.
Interpretação seria a 5a estratégia metodológica, tomando parte à medida que os estágios sejam integrados e confiavelmente completados. Interpretar faz o processo e conteúdo da conversão mais facilmente compreensível em termos do esquema de referência do estudioso. Este deve estar atento e reconhecer uma alteração deliberada de perspectiva do ponto de vista do sujeito, para aquele do pesquisador - uma visão que pode ser valiosa, mas não intrinsecamente superior àquela do analisado. Por fim, a 6a estratégia, explanação, que seria uma forma de interpretação que emprega teorias derivadas de várias disciplinas e as aplica ao estudo do fenômeno. Idealmente, seria uma prática exploratória, respeitosa e sutil. Apesar de associadas, interpretação seria mais aproximada a pontos de vista humanistas, conquanto explanação se achega mais às atividades metodológicas típicas das ciências sociais, posto que, segundo o autor, estas tendem a ser mais analíticas, críticas e reducionistas do que os modelos de estudos humanistas em teologia, religião e história. Modelos explanatórios tendem a ser mais seculares e menos interessados na dimensão do significado humano e da profundidade espiritual.
Os Estágios da Conversão Religiosa
O primeiro estágio, Contexto (Context, no original inglês), o mais inclusivo dos estágios, abrange o campo de forças dinâmicas, ou a ecologia onde a conversão toma parte (RAMBO & FARHADIAN, 1999, p. 24). Envolve os modos possíveis de acesso e admissão a (e também de transmissão de) nova orientação ou religião provendo os modelos e métodos de conversão. Pode conter também fontes de resistência, visto que as pessoas, ainda que atentas a influências, normalmente evitam mudanças – resistir é muito difundido em nossa espécie.
Existe uma tendência em separar o indivíduo e o seu meio, esquecendo que os mundos político, religioso, econômico, social e cultural são delineados pelas pessoas. Dito de outro modo, as pessoas são moldadas pelos amplos processos de socialização neste complexo ambiente físico e social. O efeito cumulativo da educação, treinamento, das redes de relacionamento e das estruturas sociais influencia o potencial converso – é enfrentando este ‘pano de fundo’ que as pessoas iniciam sua trajetória conversível (RAMBO, 1993, p. 166).
Pode-se argumentar que o contexto não constitua estritamente um estágio mas, preferivelmente, o total ambiente da mudança religiosa. O contexto influencia cada estágio e cada estágio pode ter um impacto recíproco no contexto; há uma difusa dialética intra e inter estágios, e entre eles e o contexto. Este consiste de três esferas interconectadas, o macrocontexto, o microcontexto e o mesocontexto.
O macrocontexto inclui os amplos domínios dos sistemas políticos, organizações religiosas, corporações multinacionais, considerações ecologicamente relevantes e sistemas econômicos (RAMBO & FARHADIAN, 1999, p. 25). O microcontexto focaliza mais o mundo pessoal da pessoa, como a família e os amigos, a vocação, e outros aspectos da vida individual que têm impacto nos seus pensamentos, atos e sentimentos. E o mesocontexto abrange os aspectos mediadores entre os outros dois, como o governo local, a economia e política regional e as instituições religiosas locais.
A diversidade de contexto é elevada. Por exemplo, mesmo dentro de uma família que compartilha muitos aspectos do macrocontexto, muitos membros podem estar envolvidos em divergentes movimentos políticos ou religiosos locais, ou em vocações separadas, acarretando visões conflituosas em assuntos pessoais ou públicos. A infraestrutura do ambiente provê um contínuo de flexibilidade, mobilidade, recursos e oportunidades bem como diferentes meios e modos de acesso a nova orientação ou religião, bem como também apoio, controle e até repressão.
O estágio dois, Crise (Crisis), configura como que o catalisador para a mudança, provendo a oportunidade de uma nova opção. Esta etapa força pessoas e grupos a confrontarem suas limitações e podem estimular a busca para a resolução de conflitos, preencher vazios, ajudar ao ajuste a novas circunstâncias ou encontrar caminhos para a transformação (RAMBO, 1993, p. 166).
Uma conjuntura adversa, ameaçadora, é o resultado de muitas das experiências dramáticas, tumultuadas (ou mesmo de ruptura de vida) das pessoas, podendo implicar certas desorientações e inseguranças que levam à procura de novas alternativas. Estas crises podem ter muitas fontes e variar em intensidade, duração e amplitude, constituindo-se no maior determinante para a mudança, ou pode meramente ser o incidente desencadeante e/ou aglutinador que cristaliza a situação individual (RAMBO & FARHADIAN, 1999, p. 26). Como exemplo de crises freqüentemente associadas a fenômenos de conversão podemos citar questionamentos existenciais sobre o propósito da vida, uma doença, a experiência de proximidade da morte, uma experiência mística, o surgimento de certa pessoa, apostasia, desintegração social e até opressão política (idem).
O estágio 3 seria a Busca (Quest), a ativa procura para solucionar os problemas, o empenho em encontrar sentido, significado, propósito e transcendência. Este estágio engloba diferentes modos pelos quais as pessoas respondem a crises. Engloba também modos nos quais as pessoas se orientam na vida, em especial na vida religiosa. Buscar algo mais ou melhor do que a situação atual parece perenal para o ser humano. Segundo RAMBO (1993, p. 167), um convertido pode ser ocasionalmente passivo no processo que vivenciou, pelo motivo de uma vulnerabilidade pessoal extrema ou por um ambiente coercitivo, mas normalmente ele se mostra ativamente engajado em conseguir sua realização. A busca é, em certa medida, influenciada pelo nível de ‘disponibilidade’, de eficiência, de competência intelectual, emocional e religiosa da pessoa.
Um fator significativo para compreender o estágio da Busca é a análise da estrutura motivacional. Normalmente a motivação humana é complexa, envolvendo facetas emocionais, intelectuais e religiosas. Por exemplo, uma pessoa ansiando por relacionamentos pode julgar uma amizade proselitista como um bálsamo maravilhoso – esta amizade pode tornar-se o primeiro passo em direção a uma determinada conversão. Por outro lado, em muitos países – como os islâmicos - por causa da existência de uma religião majoritária, pessoas procurando alçar posições políticas ou na burocracia pública podem ter baldadas ou refreadas suas pretensões se não compartilharem a religião da maioria. Isto pode servir como um forte ímpeto em direção a uma conversão – alçar melhor ranking social. Em outros termos, possuir uma perspectiva religiosa diversa dos ‘poderosos’ pode prejudicar sensivelmente o acesso a oportunidades políticas, sociais ou educacionais de alguém. Pelo contrário, toda pessoa possui o desejo, a motivação no sentido de experienciar prazer e evitar seu contrário, manter um sistema conceitual apropriado, reforçar a auto-estima, estabelecer relacionamentos gratificantes e adquirir um senso de poder e transcendência.
O quarto estágio do modelo de Rambo, o Enfrentamento (Encounter), abarca a confrontação de novas opções mediante um contato entre o converso em potencial (que se encontra em crise) e um facilitador que se empenha em prover-lhe as ‘respostas’, apresentar novas orientações. Não obstante relacionarem-se dialeticamente, nem sempre ocorre congruência de interesses neste encontro. Dependendo das diferenças nas circunstâncias particulares existentes entre os ‘parceiros’, o encontro pode dar lugar a uma interação. Em resumo, três são os componentes principais deste estágio: o proselitista, o converso em potencial, e o espaço do encontro. Dependendo das qualificações do proselitista, suas motivações, estratégias e dedicação, a tendência a estabelecer uma interação de sucesso para a conversão pode ser consideravelmente reforçada. Neste aspecto de estabelecimento de uma interação de sucesso, no que tange ao converso em potencial, tal ocorrerá na medida em que este concebe, compreende o benefício no processo de conversão, visto que esta distinção pode variar enormemente de acordo com as necessidades individuais. Conversão pode prover novo sistema de significado, gratificação emocional, técnicas para a vida em geral, liderança e capacitação. Por fim, o espaço do encontro pode ser tanto público (mormente de grandes proporções, em estádios ou ginásios) quanto privado, proporcionando certa intimidade que também pode possibilitar ou alavancar um processo de conversão.
Nestes encontros ocorrem trocas complexas que normalmente não se traduzem numa conversão. Resistências baseadas em inclinações de grupo ou em características pessoais podem resultar, por um lado, em completa rejeição da nova opção bem como, noutro extremo, numa simples apatia. No entanto, muitas vezes aquele que realiza o proselitismo é persistente e criativo – visando captar o interesse de conversos em potencial, ele procura compreendê-los melhor e aperfeiçoar sua comunicação com eles. Complementarmente, conversos em potencial são eficientes tanto em demonstrar claramente o que desejam quanto em rejeitar aquilo que não têm interesse (RAMBO, 1993, p. 167).
O estágio 5, nomeado Interação (Interaction), é onde se criam as novas identidades, uma vez facilitado (ou estabelecido) interesse recíproco suficiente entre o converso e o proselitista (ou grupo). Nesta etapa o converso em potencial aprende mais sobre os ensinamentos, estilo de vida e expectativas do grupo e espera-se que o converso em potencial inicie o processo de tomada de decisão para um compromisso (RAMBO & FARHADIAN, 1999, p. 29) - apesar de que nem todos os grupos religiosos encorajam a conversão. Em outros termos, alguns grupos procuram ativamente novos membros, enquanto que outros são passivos neste particular, permanecendo para o interessado em converter a incumbência de ser suficientemente assertivo para que o processo de conversão progrida.
Quatro aspectos deste novo relacionar fazem ‘mergulhar’ o candidato à conversão na nova opção religiosa. O primeiro aspecto é(são) o(s) relacionamento(s). Relacionar-se é, comumentemente, o caminho mais potente para canalizar a nova opção e, em alguns casos, estabelecer novo trato ou convivência provê a fundação sobre a qual um novo modo de vida é erigido. O desenvolvimento e manutenção de relacionamentos pessoais, cruciais para o processo de aprendizagem, servem como redes de transformação, envolvendo famílias, amigos e professores e, quanto mais chegados, maior a propensão para a mudança religiosa.
O segundo aspecto são rituais, que permitem ao converso experienciar a religião além do mero caráter intelectual. Por meio de atividades comunitárias como cânticos, recitação de escrituras, orações, as ações rituais consolidam as pessoas e grupos e instilam um profundo senso de pertencer.
Um terceiro aspecto seria a retórica. O converso em potencial ou recém-converso inicia o emprego da retórica do grupo religioso, por meio da incorporação em seu modo de vida da linguagem de transformação inerente ao grupo particular (STROMBERG, 1993). Esta nova terminologia religiosa propicia ao convertido um sistema de interpretação não somente na esfera religiosa da vida mas também, em alguns casos, à totalidade da vida da pessoa, não raro com contornos dramáticos, carregados. Por exemplo, cristãos empregam termos como pecador, paraíso, inferno; budistas usam samsara, dharma, nirvana, e muçulmanos dizem shirk, sharia, jihad.
Finalmente, conversos em potencial ou recém-conversos aprendem a desempenhar, cumprir um papel que seja conforme as expectativas num espaço social, perante outros, e também perante a deidade/Deus. Os membros do grupo comunicam explicita ou implicitamente as mudanças esperadas que devem tomar lugar no caso de conversão. Isto habilita aos candidatos experienciar e assumir um novo modo de vida, freqüentemente com um senso de missão. Estas mudanças abarcam diferentes níveis da personalidade: self, conduta, valores e atitudes. Alguns grupos esperam total rejeição do antigo self e a criação de um novo, que costuma emergir através da internalização do novo papel como converso (RAMBO, 1993, p. 168).
O estágio 6, Compromisso (Commitment) envolve a consolidação das novas orientações espirituais, onde se consuma e consolida a transformação (ibidem). A fase de Compromisso é o completar da conversão, visto que é normalmente esperada, expectável, sendo experimentada como uma experiência psico-espiritual de capitulação, de entrega que dá poder, força ao converso mediante um senso de conexão com Deus e a comunidade. Esta comunidade pode requerer que o prosélito em perspectiva demonstre publicamente o status quo e o status da sua mudança. Exige-se assim que ele se engaje em rituais específicos que, de um lado, o capacitam e autorizam efetivamente a considerar-se separado do passado e mover-se a um novo ‘mundo’ e, de outro, consolida a nova identidade por meio de cerimônias de incorporação. Por exemplo, um método comum de firmar compromisso é declarar, prestar o seu testemunho pessoal, uma narrativa da vida do converso antes e depois de vivenciar o processo – a entrega e o compromisso, espera-se, serão mais conspícuos quanto mais pública for a narrativa (RAMBO & FARHADIAN, 1999, p. 31). Outros exemplos são a prática de dar um novo nome ao convertido, passar a usar determinadas roupas, realizar uma peregrinação ou passar pela cerimônia do batismo pelas águas. No limite, em grupos que demandam total submissão à autoridade religiosa, aos conversos pode ser requerido que deixem sua residência para viver em comunidade com outros membros de modo a intensificar seu compromisso com o grupo e seus ideais, e em alguns casos com a disposição de deixar suas vidas em martírio ou holocausto. Neste período de transição, limítrofe, o converso em potencial aprende de modo mais intensivo a como pensar, agir e sentir conforme uma ‘nova pessoa’. No processo de conversão é fundamental para o converso a reconstrução da sua memória autobiográfica e a mobilização de um novo sistema de atribuição de valores a fatos, processos, coisas, etc. em diversas esferas da vida.
O estágio final, sétimo, Conseqüências (Consequences), assinala o aquilatar dos efeitos do processo de conversão. O converso pode ser mais, ou menos cônscio da natureza das experiências que acabou de vivenciar. Desde as primeiras experiências de crise e de procura ou, em outros casos de conversão, a partir do primeiro encontro com uma nova opção, o converso experimentou, explorou e, em certo sentido ‘negociou’ a nova possibilidade, a nova opção. Após um período, certas conseqüências são mais evidentes que outras – podendo constituir alterações em dimensões afetivas, intelectuais, éticas, religiosas, políticas e sociais (RAMBO & FARHADIAN, 1999, p. 32). Para algumas pessoas, o resultado pode ser uma vida radicalmente transformada. Seus padrões de crença e ações mostram-se significativamente diferentes do modo anterior. Outros adquirem um senso de missão e propósito (é muito conhecido em certas religiões o fervor missionário em arregimentar novos conversos naqueles recém-convertidos) e outros ainda desenvolvem um calmo senso de segurança e paz. Por outro lado, um processo de conversão pode ter um efeito destrutivo, como quando o convertido sente que a nova orientação não se coaduna com o que a pessoa esperava. Em alguns casos o prosélito constata que foi manipulado tendo em vista os objetivos próprios de um grupo específico. Nestes casos a conversão reveste-se de precariedade e necessita ser defendida, nutrida, afirmada, sustentada, amparada, ou seja acompanhada pela comunidade de modo adequado, necessitando colaboração de seus membros para que haja conformidade de opiniões. Em qualquer caso, assim que o converso desenvolve espiritualidade, seu entendimento se torna mais sofisticado e ele revê, reinterpreta e revaloriza sua experiência. Ao que parece, conversão, para Rambo, é o mesmo que ‘mudança religiosa’.
Quanto aos maiores temas e questões do modelo de conversão de Rambo, cumpre assinalar que ele postula uma nova abordagem sobre o tema (RAMBO 1993, p. 170), na medida que questiona como inadequado o recorrente debate envolvendo questionamento do tipo “ou um aspecto ou outro”. Debates sobre se a conversão é gradual ou súbita, parcial ou total, interna ou externa ou assemelhadas se resolvem na medida em que se atesta a existência de um espectro de possibilidades possíveis. Conversão é maleável. É um processo complexo que se realiza ao longo do tempo, moldado tanto pelas expectativas daqueles que advogam certo tipo de conversão quanto (e concomitantemente) pela experiência da pessoa que vivencia o processo. Enquanto se pode discernir padrões gerais, é impossível asseverar que cada converso de modo isolado passa precisamente pela mesma experiência. Grupos diferem, pessoas diferem, e os modos de interação entre pessoa(s) e grupo(s) diferem.
Fenomenologicamente existem alguns elementos do processo de conversão que são súbitos e outros que são graduais. A questão é complexificada pelo fato de que muitos indivíduos têm uma idéia fixa sobre o que se constitui relevante no processo de conversão e tendem com isso sistematicamente a desconsiderar qualquer dado que não se coaduna com sua idéia de conversão. Uma das questões mais complicadas nos estudos sobre conversão diz respeito a comparações entre experiência individual e as expectativas do ambiente cultural-social-religioso (RAMBO, 1993, p. 171). Acreditava-se que a conversão constituísse uma experiência universal, com claras fronteiras e diretrizes para discernir o genuíno do fraudulento, enganador. Rambo (ibidem) comenta o trabalho de GALLAGHER (1990) onde este observa que é provavelmente impossível descobrir o que é conversão ‘pura’ – assumindo que isto exista – dadas as penetrantes e difusas influências das expectativas sobre o que possa ser a conversão. Rambo aduz neste particular que separar pura experiência de expectativa é um falso separar, visto que tal ‘clivagem’ presumiria que determinado aspecto primitivo e ainda não corrompido da consciência humana ou mesmo do encontro humano com o divino possa ser transcultural. Antes, crê Rambo, a experiência humana é, por definição, moldada pelo ambiente (principalmente o social) – há uma constante dialética entre a experiência humana e o ambiente do homem. Em outros termos, a meu ver, se Rambo não descarta explicitamente a possibilidade de haver dimensão ou influência transcultural no fenômeno, esta chance é minimizada em seu modelo.
Um dos principais modos o qual experiências e expectativas são formuladas é através de tradições religiosas sustentando ideologias, teologias e liturgias que formulam normas para a mudança religiosa (Rambo discute este aspecto no Cristianismo, mas julga que isto se aplica a todas as religiões). Em outras palavras, ele acredita que o efeito principal da teologia na conversão é a criação de normas para o que é esperado no processo de conversão e o delineamento de expectativas e experiências de conversos. Existem diversos tipos de teologia que, em geral, constituem-se no esforço disciplinado de articular novas e desafiadoras crenças e modos de vida, de modo que a mensagem religiosa possa ser aceita e compreendida pelas pessoas de diversas culturas. Rambo comenta três tipos de teologia.
A teologia formal normalmente é praticada em ambientes acadêmicos por estudiosos versados em teologia e filosofia. Teólogos acadêmicos dedicam-se ao esforço de conceituar sofisticadamente a fé da comunidade na tradição do pensamento contemporâneo e da filosofia. Mesmo que as discussões e os artigos que produzem não sejam diretamente apreciados nas capelas e bancos de igreja (ou raramente lidos), os autores de livros e artigos teológicos intelectualizados são os professores que moldam os oficiais do clero que servem na Igreja como preletores, pastores ou pregadores.
Um segundo nível de teologia é precisamente o tipo de discurso verbal e escritos utilizados pelos pregadores, docentes e ministros na congregação local. Rambo argumenta que esta forma de teologia é a que mais diretamente influencia na moldagem da experiência do converso comum (RAMBO, 1993, p. 172).
O terceiro nível de influência teológica é menos claramente definido, mas igualmente influenciador, e estão dispostos na Bíblia, nos hinos e na liturgia, sendo tão importantes quanto os sermões dos pastores. As pessoas anos a fio entoam hinos, recitam orações, lêem as escrituras. Estas imagens, idéias, sentimentos, estórias e emoções são importantes em criar o ethos para o processo de conversão. Mesmo que um pastor, ministro ou preletor particularmente não enfatize determinados aspectos da conversão, existem muitos destes na liturgia e na escritura que influenciam a consciência dos fiéis. Ao que parece, a tradição transporta e propaga modelos de conversão e exerce de modo manifesto uma influência mais direta nos conversos em potencial do que a teologia formal dos intelectuais.
Em resumo, para RAMBO (1993, p. 5), conversão constitui um processo ao longo do tempo, não um evento singular; é contextualizado e, portanto, influencia e é influenciado por uma matriz de relacionamentos, expectativas e situações as mais variadas; os fatores no processo de conversão são, como citado, múltiplos, interativos e cumulativos. Inexiste para nosso autor uma causa única para a conversão. Conversão é um evento e um processo, mas não existe um único processo e não existe uma conseqüência isolada ou única como resultado deste processo. Sua trajetória é impredizível e reversões não são incomuns (RAMBO & FARHADIAN, 1999, p. 33).
Vimos inicialmente neste Capítulo algumas generalidades sobre o fenômeno da conversão, bem como a recopilação sucinta, a partir do livro de William James As variedades da experiência religiosa, de alguns aspectos históricos deste conceito. Vimos também outras idéias a partir de alguns estudos contemporâneos sobre o tema, e o início da discussão da natureza do fenômeno humano da conversão, apresentando por fim o Modelo de Conversão por Estágios, de Lewis Ray Rambo.
No próximo Capítulo discutirei a aplicação do método hermenêutico num depoimento clássico de conversão religiosa, obtido a partir de um livro autobiográfico póstumo, escrito por um dos grandes escritores nacionais, Paulo Setúbal, falecido prematuramente em 1937.
[1] ver ‘Table 1. Stages of Faith and Selfhood’, In: FOWLER, 1996, p. 170, e também a ‘Figura 5.3’, In: FOWLER, 1992, p. 238.