A V I S O


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terça-feira, 16 de fevereiro de 2010

Capítulo I da Tese


CAPÍTULO I – LINGUAGEM E HERMENÊUTICA

A capacidade de compreensão é a faculdade fundamental da pessoa, que caracteriza sua convivência com os demais, atuando sobretudo pela via da linguagem e do diálogo. H-G GADAMER, V&M II, p. 381


O psicólogo, ao questionar a realidade, necessita dispor de amplo instrumental intelectual e de conceitos que sejam congruentes, compatíveis com sua visão de mundo. A metodologia que utilizar em suas investigações vai precisamente corporificar esta visão de mundo, que está sempre pressuposta em seu trabalho. Neste sentido tentarei explicitar o que considero operacional dentro do posicionamento hermenêutico.

Iremos discutir a Hermenêutica como abordagem metodológica para a pesquisa em Psicologia nesta tese. Este Capítulo possui 5 seções. Na primeira, considero alguns aspectos tradicionais pertencentes à discussão do que constitui a natureza humana. Na segunda seção, discuto o lugar da linguagem, (esta entendida como o aspecto primacial da natureza do Homem), como via de acesso à experiência, por meio de depoimento. Na terceira seção, apresento algumas abordagens fundamentais que pretendem alcançar o fenômeno da linguagem, antecedendo a quarta seção, onde analiso como se constitui a solução hermenêutica para a compreensão da vivência, expressa na linguagem. Na quinta seção discuto os passos que identifiquei neste percurso hermenêutico, sob a ótica de Hans-Georg Gadamer.

Ao nos propormos, enquanto psicólogos, a tarefa de compreender o que significam o ser e o fazer humano, somos convocados a discernir, em dado momento, qual, entre muitos caminhos, pode ser visualizado como o ‘melhor’, o mais ‘adequado’, ou seja, o mais preciso, econômico e correto, segundo nossa visão de mundo, para realizar esta tarefa. O caminho escolhido (ainda que possa ser modificado no futuro) insere―se e atualiza precisamente esta nossa visão de mundo. Esta visão determina por sua vez o modo de nossa inserção neste mesmo mundo, a de nossos semelhantes e a maneira como nos relacionamos conosco e com os demais entes (GADAMER, 1997, p. 116). Em outros termos, situamo―nos quanto aos temas referentes ao que constitui efetivamente nosso status perante o universo, e o propósito ou sentido da vida humana. Mediante este posicionamento podemos então nos dedicar, p. ex., às questões sobre se (quando e como) existe sentido para sua existência, e quando e de que modo o Homem pode tornar―se efetivamente objeto de inquirição sistemática.

Estes posicionamentos, na sua gênese e manutenção, levam em consideração inicialmente a discussão do que possa constituir precisamente a ‘natureza humana’, preocupação corriqueira no pensamento moderno. Para estas apreciações sobre a natureza do humano, vamos considerar basicamente nesta seção as sugestões de TILES (1994). A pessoa comum parece compreender o que seria esta ‘natureza’ através do caráter e da conduta das pessoas com quem se relaciona. Baseada no que seus semelhantes realizam, no modo como se comportam, a pessoa reconhece qualidades que não a surpreendem, formando expectativas sobre as qualidades (e condutas) compartilhadas com os demais, e sobre as maneiras diversas em que se diferenciam dele e de outros viventes. Pessoas são orgulhosas, sensíveis, ávidas por reconhecimento ou admiração, ambiciosas, esperançosas, egoístas ou capazes até de auto―sacrifício. As pessoas obtêm satisfação com suas conquistas, são leais ou desleais e, em especial, carregam dentro de si algo misterioso, imaterial e inextenso, denominado ‘consciência’, que se expressa, se realiza, em especial, pela linguagem (TRACY, 1997, cap. 3; VANOYE, 1979). A pessoa, mediante sua experiência diuturna, lidando com (ou observando) os diversos entes, concebe predições sobre amplas formas de condutas, e as comunica, verbaliza, rotulando―as de ‘irracionais’, ‘bestiais’, ‘inumanas’, ‘anormais’, ‘santas’, ‘excepcionais’, ‘valorosas’, ‘corajosas’, etc.


A natureza do Humano

A natureza do que seja o humano, para o cidadão comum, parece situar o indivíduo, numa escala de perfeição, acima dos animais, mas abaixo dos santos, profetas ou anjos. Esta idéia foi incorporada no tema (originalmente oriundo da Grécia Clássica) da Grande Cadeia do Ser – uma ordem hierárquica ascendente, do mais simples e inerte ao mais complexo e ativo: mineral, vegetal, animal, homem e, finalmente, seres divinos superiores ao homem. Na Idade Média estes seres divinos constituíam as diversas ordens de seres supranaturais, extraordinários, sendo Deus como o singular entre eles, suprema perfeição onipotente e onisciente. Havia a tendência, nesta teoria, de assumir―se a irmandade dos homens, considerados seres humanos plenos, em virtude de serem classificados, diferenciados acima de quaisquer outros animais situados concretamente na ordem das coisas. Ainda assim, dentre a coletânea de noções normalmente empregadas nestes âmbitos, requeria―se uma definição mais precisa do que seria a natureza humana.

Até o Século XV o entendimento comum, padrão, era de que o homem possuía uma natureza fixa, determinada por seu lugar no Universo e seu destino. Os humanistas da Renascença, entretanto, proclamaram que o que distinguia o Homem de todas as demais criaturas era que ele não possuía natureza. Era uma maneira meramente quase―lingüística de asseverar que as ações do Homem não eram lastreadas nas leis da Natureza, no mesmo sentido dos animais. O Homem era capaz de assumir responsabilidade pelas suas ações porque ele tinha o exercício de seu livre―arbítrio. Esta visão recebeu duas interpretações subseqüentes. Uma, de que o caráter humano era indefinidamente plástico; a cada indivíduo era concedida determinada forma pelo ambiente no qual nasceu, desenvolveu―se e viveu. Neste caso, mudanças ou desenvolvimento em seres humanos seriam relegados como produto de mudanças culturais ou sociais, mudanças em si mormente mais rápidas do que a evolução biológica. Aqui, disciplinas como História, Política, Sociologia, mais do que a Biologia deveriam ser averiguadas para um adequado entendimento dos processos. Mas se estas primeiras disciplinas constituem o estudo básico do Homem, então emerge a questão de que em que extensão as mesmas podem seguir um escrutínio, um programa científico. Os métodos da História não são, nem podem seguir os métodos das ciências naturais (GADAMER, 1999, Segunda Parte). A legitimidade das afirmativas das denominadas ciências sociais (ou humanas) em assumir o método científico tem sido questionada e permanece em aberto, como veremos. A outra, é que cada indivíduo é único, autônomo e deve construir―se a si próprio. Assertivas sobre a autonomia do Homem envolvem a rejeição da possibilidade da imposição radical de leis do comportamento humano ou do curso da História. ‘Liberdade’ não é determinada por leis, ou pela Natureza (ROGERS, 1987 , Cap. XVII). Neste caso, o estudo do Homem não poderia nunca encontrar um paralelo nas ciências naturais, com suas estruturas teóricas baseadas na descoberta das leis da Natureza.

Anteriormente, os gregos clássicos, notadamente Platão e Aristóteles, introduziram as noções de forma, natureza, ou essência como conceito (metafísico) explanatório. Variações deste conceito eram basilares no pensamento ocidental até o Século XVII. Observações do mundo natural levantaram a questão do porquê as criaturas reproduziam―se segundo sua espécie, e não derivavam outras dissimilares. Para explicar este fenômeno, postulou―se que as sementes tanto vegetal quanto animal deveriam, cada uma, conter internamente em si, as mesmas características, forma, natureza ou essência das espécies de onde derivaram, e nas quais as mesmas deveriam desenvolver―se subseqüentemente. Este padrão de explicação é preservado no modelo biológico moderno de código genético, incorporado na estrutura molecular do DNA de cada célula (GUIMARÃES, 1998). Entretanto, há importantes diferenças entre o conceito moderno de código genético e o antigo, derivado do conceito clássico grego de forma ou essência. Primeiro, biólogos hoje em dia são capazes de localizar, isolar, experimentar, analisar e manipular moléculas de DNA, o que convencionou―se denominar engenharia genética. Sendo estruturas responsáveis pelo desenvolvimento físico, as moléculas de DNA representam os meios pelos quais o homem pode ser biologicamente caracterizado. Formas ou essências, por outro lado, não são observáveis; a forma, natureza ou essência do homem ou de qualquer outra espécie de ser, foi colocada como um princípio presente na ‘coisa’, determinando sua espécie através da produção, nesta ‘coisa’, de uma tendência inata a ‘esforçar―se’ para desenvolver a si num perfeito exemplo de sua espécie — para preencher sua natureza e realizar seu potencial total de ser ‘coisa’ de um determinado tipo. Tal princípio fez surgir a visão teleológica (que tem um determinado objetivo, propósito) do mundo natural no qual os desenvolvimentos foram explanados pela referência à meta em direção à qual cada coisa natural, por sua natureza, se empenha; em outras palavras, pela alusão à forma ideal que esta coisa visava realizar (GURWITSCH, 1970; SMITH, 1974). Em contraste, a estrutura genética presente em cada célula é hoje invocada para explicar o desenvolvimento de um organismo de um modo não―proposital, mecanicista. Em outros termos, o desenvolvimento é demonstrado ser dependente da estrutura genética e, portanto, determinado por estruturas e condições preexistentes. Segundo, a mutabilidade genética forma uma parte essencial da moderna biologia evolutiva. Não somente há diferenças entre indivíduos de uma dada espécie, dando conta de dessemelhanças entre eles na sua configuração, como coloração ou tamanho, mas também a mutação genética aleatória, na presença de condições ambientais alteradas, pode resultar em alterações na constituição genética das espécies como um todo. Portanto, na teoria biológica evolucionária, as espécies não são estáveis; tipos naturais não têm as formas ou essências fixas ou imutáveis da biologia antes do advento da teoria evolucionária (GOULD, 2002).

Sob este pano de fundo, se a natureza humana é entendida simplesmente como uma forma especial do homem que é herdada biologicamente como em todas as espécies, permanece o delicado problema da descoberta, em qualquer caso dado, de qual é o papel que o ambiente possui na determinação das características dos membros maduros das espécies em geral, e no caso do homem em particular. Aqui, mesmo no caso de características puramente fisiológicas, este objetivo pode ser complexo, como p. ex., averiguar em que extensão dieta, exercício e condições de trabalho determinam aspectos como suscetibilidade a doenças coronarianas e câncer. No caso de características comportamentais e psicológicas, como inteligência, as dificuldades são multiplicadas ao extremo, onde a mera pesquisa empírica não oferece ainda hoje explicações suficientemente convincentes. Há muito debate conceitual sobre o que é inteligência e, por extensão, sobre a forma e instrumentos construídos para sua mensuração (DAVIDOFF, 2001, Cap. 7). Ainda é objeto de sérias controvérsias a determinação da amplitude de como e quanto do nível de inteligência de um indivíduo é naturalmente determinado no nascimento (ou na concepção e gestação), em contraste com sua exposição ao ambiente, o que determinaria (concomitantemente à maturação e crescimento do indivíduo), as condições do desenvolvimento de todas as suas capacidades.

Existe outra vertente desta discussão sobre o quanto da variabilidade dos níveis de inteligência (a) é um produto das variações das condições de nascimento (no qual as pessoas têm o mesmo potencial inicial), versus (b) constitui um reflexo das variações no ambiente nos quais as pessoas amadurecem, se desenvolvem. Seria precisamente a questão de que em que aspecto existiria algo como uma natureza humana comum a todos os seres humanos. Pode-se perguntar também de que modo existiriam diferenças intrínsecas entre todos os que pertencem à espécie Homo Sapiens. Como o termo sapiens denota, homens são tradicionalmente compreendidos como distinguidos de (e privilegiados sobre) os demais viventes em virtude de possuir intelecto, ou razão. E o que constitui a razão? No senso comum, pode ser um rótulo pelo qual se identifica em alguém a posse de certo composto de qualidades. Estas qualidades se expressariam nos aspectos mentais, intelectuais, psicológicos. Anteriormente Aristóteles já propunha que a essência do Homem seria, entre os demais viventes, o fato do mesmo ter a posse do logos (GADAMER, 2000a, p. 117; STEIN, 1996, p. 12). Na tradição ocidental, esta conceituação de logos foi traduzida no sentido de razão, pensamento. Assim, pelo fato do ser humano ser o animal racional, ele se distingue dos demais (animais) pelo seu intelecto, sua capacidade de pensar. Mas esta palavra logos também pode significar, sobretudo, linguagem. E o Homem, pensando, cria e compartilha linguagem; é um exemplo do que dizemos este animal humano exibir atividades que podem ser cognominadas ‘racionais’. Dito de outro modo, se a atividade humana pode ser e efetivamente é pautada por determinada racionalidade, significa afirmar que o sujeito racional relaciona―se com os objetos do mundo de modo primacial através da mediação da linguagem; ela é o meio pelo qual os sujeitos alcançam seus objetos (ROUX, 1977, p. 12). No plano humano, identificamos ainda uma característica mais importante, uma das faculdades essenciais, a de que, sobretudo por via da linguagem, do diálogo, a pessoa pode realizar a capacidade fundamental da compreensão (GADAMER, 2002, p. 381).

Pode―se considerar assim, em princípio, que a maior parte do relacionamento do Homem com o mundo é estruturada, mediada pela linguagem (VIANA, 2000; DUTRA, 1996) e isto, a linguagem é o que, ao final e ao cabo, perfaz ao Homem justamente ‘humano’. É grande a tentação de proceder a um certo reducionismo aqui, tão marcante se mostra sua prevalência na vivência do homem. Ao consideramos o Homem utilizando a linguagem, dizemos que ele faz uso de palavras, de conceitos, de significados, de sentidos: por meio disto tudo ele tem acesso ao mundo; em outros termos, vem (bem ou mal) a conhece―lo (STEIN, 1996, p. 16). Portanto, a natureza humana fundamentalmente não se reduz, se traduz em linguagem, que é como que a marca do homem. Consideramos que na linguagem reside a chave para o entendimento do Homem. Mas o que é a linguagem?


A Linguagem

A linguagem enquanto fenômeno do homem comum é objeto de análise entre os diversos tipos de estudiosos e, no plano humano, os mesmos têm a pretensão de alcançá―la, ainda que por diversas vertentes (MARCONDES, 1992; CHALUB, 1993; KOCH, 1992; CHOMSKY, 1974, ORLANDI, 1999). A grande variabilidade de caminhos propostos para descrever o que seja ‘linguagem’ está ligado ao fato de que as experiências de aquisição de linguagem são eminentemente idiossincráticas, ainda que exercidas em comunidades de falantes. É um fenômeno amplo e multifacetado, um processo, sujeito a inúmeras influências, determinando inúmeras decorrências. A ciência, que procura desenvolver uma ‘linguagem’ exata, criteriosa, objetiva, rigorosa para o conhecimento da realidade, se aproxima do fenômeno da linguagem obtendo limitado sucesso. Este paradoxo foi bem colocado por CASSIRER (1972, p. 214): "Os termos da linguagem comum não se medem pelos mesmos padrões daqueles com que expressamos conceitos científicos. Confrontadas com a terminologia científica, as palavras da linguagem comum revelam sempre certa vagueza; quase sem exceção, são tão indistintas e mal definidas que não suportam a prova da análise lógica". Wittgenstein diz “122. Uma das principais fontes de nossa falta de compreensão é que não dominamos com uma clara visão o uso de nossas palavras. –Falta à nossa gramática uma disposição clara. (...)” (WITTGENSTEIN, 1996, p. 74). O uso da linguagem, inevitavelmente, traz a tendência de sermos imprecisos, não só por causa da mutabilidade, mas também da maleabilidade do seu emprego (AMATUZZI, 1989, Introdução). À parte os questionamentos de cada escola subjacentes às diversas tradições e vertentes, o fenômeno lingüístico a que elas remetem ocorre, como vimos, em grupos sociais, em comunidades, conferindo a ele enorme flexibilidade e plasticidade. CASSIRER (1972) escreve à p. 181 do seu clássico Antropologia Filosófica que "... a linguagem humana, desde o princípio, esteve sujeita à mudança e à decadência". Mais adiante coloca que "A mudança ― a mudança fonética, analógica, semântica ― é elemento essencial da linguagem" (p. 189). Em suma, o uso da linguagem carrega em si o germe da transformação, da mudança e, por extensão, da redundância e da incorreção. O uso da linguagem deveria ser cercado de cuidado constante, visto a tendência a ser imprecisa ser―lhe como que intrínseco (TRACY, 1997).

Ainda que com limitações em si e para o seu adequado acesso pelos estudiosos, o valor maior da linguagem consiste em permitir ao Homem consignar um valor a cada objeto do cosmo. Este se torna acessível via estabelecimento de uma consciência de si como ser situado, possuidor de uma ‘ferramenta’ de conhecimento: "A virtude da linguagem (...) é a de constituir (...) um universo à medida da humanidade" (GUSDORF, 1970, p. 12). Precisamente ao utilizar este instrumento, esta ‘ferramenta’, os modos pelos quais os objetos se dão aos homens constituem―se em linguagem e assim, ao que parece, inexiste experiência significativa que não seja mediada pela linguagem. Dito de outro modo, se o mundo é vislumbrado sob a égide da racionalidade, abarcá―lo se dá mediante a utilização de conceitos estruturados em um discurso que confere sentido às coisas deste mesmo mundo. É isso o que permite ao Homem interpretar e compreender as coisas deste mundo. Vamos detalhar um pouco estes aspectos.

Como seres racionais, proferimos sentenças onde afirmamos ou negamos sobre o mundo tal qual o vemos e, mediante proposições práticas, optamos sobre o que devemos ou não realizar. Ou seja, portamos uma racionalidade de dupla face: a racionalidade que averigua a veracidade (ou falsidade) daquilo que pronunciamos e a racionalidade que vai averiguar a fundamentação dos nossos atos (STEIN, 1996, p. 10). Na investigação do Homem e seu mundo, podemos efetivamente estuda―lo enquanto se averigua a linguagem que o Homem produz, visto que (a) o Homem se relaciona com os objetos do mundo através da linguagem, criando e manipulando conceitos e, mediante isso, (b) inexiste saber não―proposicional. É o logos apofântico de Aristóteles: se somos racionais, sabemos dizer frases que podem ter a propriedade de verdade e de falsidade. Em suma, “o ser humano só conhece através dos conceitos, só conhece através da linguagem, (...) somente é racional porque seu acesso ao mundo se dá via sentido, via significado, via conceitos, via palavras, via linguagem" (STEIN, 1996, p. 16). “A linguagem é a linguagem da própria razão” (GADAMER, 1999, p. 585). Em decorrência disso, como resultado principal para o Homem, como inestimável tesouro para sua humanização, “a linguagem é o medium universal em que se realiza a própria compreensão. A forma de realização da compreensão é a interpretação” (GADAMER, 1999, p. 566). Dito de outro modo, a racionalidade é dada mediante a correção de nossas frases e sentenças, mas a dificuldade e imperfeição do racionalizar impõem a tarefa de interpretar, que é também imperfeita, mas é o instrumento que subsidiariamente se emprega, na ausência de outro melhor. A verdade das proposições não é inteiramente fundamentada na forma lógica, pois as asserções dependem do contexto (subjetivo, histórico e cultural) onde se situam. Portanto necessita―se interpretar o conteúdo da linguagem, as proposições e “talvez descobrir que há uma verdade que é o lugar da proposição” (STEIN, 1996, p. 19), pois estas não prevêem, de per si, compreensão.

Abro um parêntese aqui para comentar uma sugestão do prof. Geraldo José de PAIVA (2003) quando alerta que não é necessário basear na racionalidade humana o reconhecimento do lugar ímpar da linguagem no mundo humano. Sabe-se que a linguagem abarca também o pré-racional, o para-racional, o irracional e o suprarracional. Como exemplo cita o mestre que, no campo da experiência religiosa, ocorre atualmente no Brasil uma revalorização da dimensão afetiva, para-racional, de que a conversão constitui um caso. Quando eu coloco a linguagem como suporte ao racional, imagino o impulso do homem que deseja manter sua sanidade mental mediante a coerência e harmonia na sua visão de mundo, que o uso apropriado da linguagem lhe proporciona. Mas vejo também que, adentrando o campo do numinoso, da religião, muitas vezes a demarcação da racionalidade via linguagem demonstra-se empreitada a exigir mais solicitude, posto que o conceito parece tornar-se mais flexível, elástico (PINTO, 2002, afirma que ‘O universo da religião tem de ser transportado para uma outra racionalidade (...) os discursos religiosos comportam tudo isto: uma lógica própria, uma funcionalidade própria, um léxico específico’). RAZZOTTI (1998, p. 149), sob Rudolf Otto, afirma que ‘O conhecimento religioso pode advir por via racional, examinando a essência e a existência se Deus, ou pode-se chegar ao divino por via extra-racional, anulando no todo ou em parte o elemento intelectual’. Este aparente conflito permanece e exige, para sua elucidação, engajamento tanto pelo homem comum em sua vivência, quanto para o acadêmico com a diferença que, para este, não se pode abdicar do uso das mais elevada racionalidade no seu tratamento.

Existe, segundo MARCONDES (1992) uma efetiva necessidade de considerar, no campo das ciências humanas, o pensamento em termos lingüísticos, visto que existe insatisfações oriundas de impasses encontrados pela concepção da consciência individual, em outros termos, da subjetividade, esta constituidora do significado (nesta concepção moderna, tanto racionalista quanto empirista, o sujeito é o núcleo da construção da experiência, i. é, da relação com o real, que se define como objeto para este sujeito). Segundo este autor,

O principal problema encontrado por esta concepção é o solipsismo, isto é, o isolamento da consciência individual em relação ao mundo externo, a tudo que lhe é outro, diferente do sujeito, incluindo-se aí os outros indivíduos, as outras consciências individuais que acabaram necessariamente sendo tomadas também como objeto. Trata-se, no fundo, do problema da impossibilidade, em última análise, de se justificar a validade universal e mesmo a objetividade deste significado a partir da consideração da consciência individual apenas. Como poderemos saber que a experiência do sujeito individualmente considerada é idêntica, ou mesmo semelhante à dos outros indivíduos? Caso não seja, como é possível o entendimento, a comunicação? A introdução do conceito de linguagem permitirá a superação desse impasse (MARCONDES, 1992, p. 132). (itálicos do autor.


Por outro lado, existe outra dimensão pertencente à linguagem que cumpre assinalar. No prefácio intitulado ‘Aprender a dizer a sua palavra’ para o clássico Pedagogia do Oprimido, de Paulo FREIRE (1978), o professor Ernani Maria FIORI (1967, 1978) ensina que o conhecimento da pessoa e do mundo, iniciado de modo individual, se realiza efetivamente a partir de (e quando) o homem se relaciona com o semelhante. Ele afirma que:

Com a palavra, o homem se faz homem. Ao dizer a sua palavra, pois, o homem assume conscientemente sua essencial condição humana.

A ‘hominização’ opera―se no momento em que a consciência ganha a dimensão da transcendentalidade. Nesse instante, liberada do meio envolvente, desapega―se dele, enfrenta―o, num comportamento que a constitui como consciência do mundo. Nesse comportamento, as coisas são objetivadas, isto é significadas e expressadas: o homem as diz. A palavra instaura o mundo do homem. A palavra, como comportamento humano, significante do mundo, não apenas designa as coisas, transforma―as; não é só pensamento, é ‘práxis’. (...)

Expressar―se, expressando o mundo, implica o comunicar―se. A partir da intersubjetividade originária, poderíamos dizer que a palavra, mais que instrumento, é origem da comunicação — a palavra é essencialmente diálogo. A palavra abre a consciência para o mundo comum das consciências, em diálogo, portanto. Nessa linha de entendimento, a expressão do mundo consubstancia―se em elaboração do mundo e a comunicação em colaboração. E o homem só se expressa convenientemente quando colabora com todos na construção do mundo comum — só se humaniza no processo dialógico de humanização do mundo. A palavra, porque lugar do encontro e do reconhecimento das consciências, também o é do reencontro e do reconhecimento de si mesmo. (FREIRE, 1978, p. 13, negrito meu)

Para Fiori, atuar no mundo implica o uso da palavra, para significa―lo. E assim humanizamo―nos na medida em que dialogamos; este passo em direção ao outro é a condição perene de também nos atualizarmos em nossa humanidade (‘hominização’), e o fazemos no momento em que fazemos uso da palavra. De passagem, apontamos que este ‘processo’ encerra em si uma característica muito importante: conforme aponta TRACY (1997, p. 38), a conversação, em sua forma primaria, é uma exploração de possibilidades na busca da verdade.

Gadamer, em seu texto A diversidade das línguas e a compreensão do mundo (GADAMER, 1997, p. 109―125), questiona como pode o Homem vir a entender―se enquanto tal. Como uma das primeiras questões decorrentes, aduz também em seu texto o questionamento subsidiário do que vem a ser, o que significa ‘o mundo’ (Welt). Sob sua análise, ‘mundo’ ao final e ao cabo significa ‘mundo humano’, não o mundo distante dos físicos e matemáticos, mas o mundo onde está situado o Homem, onde ele deve realizar o seu compreender. Neste mundo – humano ―, compreender significa compreender―se, compreender―se no mundo e, assim, compreen-dermo―nos uns com os outros, ainda que entender o outro seja árdua tarefa. O modo primordial da compreensão do outro é via linguagem, algo que o Homem constrói mutuamente, de modo recíproco, dialogístico. Compartilhando a mesma linha de pensamento de Fiori, Gadamer diz que a linguagem tem seu verdadeiro ser na conversação, no exercício do mútuo entendimento:

O entendimento lingüístico coloca aquilo sobre o que ele ocorre diante dos olhos dos que participam nele, como se faz como um objeto de controvérsia que se coloca no meio das partes. O mundo é o solo comum (...) Todas as formas da comunidade de vida humana são formas de comunidade lingüística, e mais ainda, formam linguagem. Pois a linguagem é por sua essência a linguagem da conversação. (GADAMER, 1999, p. 647)

O homem cria o saber em comunhão, mediante a comunicação consigo e com os demais, visto ele situar―se dentro de uma determinada cultura, de um contexto, de uma história. Por isso, ainda que o homem detenha estruturas lógicas – uma razão, uma racionalidade - que viabilizam o seu conhecer de coisas e objetos, isto não basta para conhecer completamente sua condição e aos demais. Por isso necessita interpretar, para então poder compreender — e isto, compreender, é incompleto, inacabado se realizado isoladamente, com solipsismo. “Somos nós, ninguém em particular e todos em geral, que falamos a cada vez, e esse é o modo de ser da ‘linguagem’ ” (GADAMER, 2002, p. 231). Considere por agora aqui, grosso modo, ‘interpretar’, como aclarar (como um primeiro passo, uma parte constituinte de compreender), e ‘compreender’ como ‘alcançar com a inteligência’, ‘entender a totalidade’. Voltarei a estes conceitos adiante.

Por estas razões estamos identificando a linguagem como o substrato pelo qual pode―se esperar melhor identificar e compreender o problema alinhavado nesta tese.


Linguagem e Método

Identificada a linguagem como o caminho (aqui entendido como ‘rumo’ e/ou ‘via’ – FERREIRA, 1999, p. 380) preferencial para o perquirir desta tese, trata―se de perguntar agora pelo modo de proceder ao longo deste caminho, ou seja, pelo método de trabalho a ser desenvolvido. Várias abordagens diversificadas têm discutido o que entendem ser o conhecimento do que constitui a natureza da ‘linguagem’. Dentre as principais correntes (que à vezes se interpenetram), funcionando cada uma como ‘guarda―chuvas’ que abriga em seu bojo várias tendências e enfoques, as mais citadas são a Lingüística, a Semiologia estruturalista, a Análise de Discurso, a Filosofia Analítica da linguagem e a Hermenêutica. O procedimento destas vertentes no que tange a pensar a linguagem tem tido a peculiaridade de constituir como que compartimentos ‘quase’―estanques, ignorando―se ou excluindo no desenvolvimento de uma o sentido de outra (RUEDELL, 2000, p. 123). Para os objetivos de nossa tese, abordarei sucintamente alguns aspectos das duas últimas citadas, a serem utilizadas em nosso trabalho.

A filosofia da linguagem, apesar de iniciada na antiguidade grega, se estabeleceu efetivamente no século XX com tal vigor que se disse que a Filosofia passou por um “giro lingüístico” (RUEDELL, 2000, p. 112―113). Aqui, o grande personagem é Ludwig Josef Johann Wittgenstein, com sua obra Tractatus Lógico―Philosophicus, de 1921. Ele se preocupou nesta obra com os limites da linguagem ― e por extensão com as fronteiras do pensamento, visto que inexiste outra maneira de pensar a não ser por meio de expressões lingüísticas. A filosofia analítica, em seus fundamentos, propõe que os problemas filosóficos sejam resolvidos por instrumentos lógico―lingüísticos, concentrando―se estritamente na análise da proposição. A moderna concepção analítica da linguagem entende o processo de análise (dividir um conceito em partes mais simples para revelar sua estrutura lógica) como essencial para o método e o progresso filosóficos. Seus propositores defendiam a idéia de que a forma superficial de uma linguagem poderia esconder uma estrutura lógica mais aprofundada, mas enganadora. “383. Não analisamos um fenômeno (p. ex. o pensar) mas um conceito (p. ex. o conceito de pensar), portanto, o emprego de uma palavra. (...); 90. (...) Por isso nossa reflexão é gramatical. E esta reflexão ilumina o nosso problema, removendo mal―entendidos. Mal―entendidos que dizem respeito ao uso de palavras, provocados, entre outras coisas, por certas analogias entre as formas de expressão em diversas áreas de nossa linguagem. — (...)” (WITTGENSTEIN, 1996, p. 160; 65). A análise da linguagem propunha a pergunta – o que significa compreender um enunciado assertórico? A resposta seria somente esta: conhecer suas condições de verdade, em outros termos, saber efetivamente sob que condições o enunciado é verdadeiro. “Compreende a linguagem aquele que conhece as regras de designação e de cumprimento desenvolvidas na definição de verdade; (...) equivale ao conhecimento das regras” (RUEDELL, 2000, p. 118).

Os sucessos iniciais de Frege e Russel na redução da matemática à lógica e as descobertas possibilitadas pela teoria das descrições definidas deram grande impulso a esta escola, que visava proporcionar uma abordagem científica e objetiva aos problemas tradicionais. A filosofia analítica prosperou sobretudo no ambiente anglo―saxão de Cambridge e Oxford. Este programa atingiu seu clímax com as primeiras obras dos positivistas lógicos e influenciou quase toda a filosofia anglo―americana da primeira metade do século XX. Gilbert Ryle, E. G. Moore, W. V. Quine, J. L. Austin, Donald Davidson, John Searle e Rudolf Carnap estão entre os seus praticantes mais conhecidos (BLACKBURN, 1997, p. 13, 149; RORTY, 2000, p. 12). Este método, apesar do saudável efeito realizado no campo filosófico (entre outras qualidades, insistia na atenção rigorosa ao significado em todas as fases do ato de filosofar) posteriormente teve seu ímpeto arrefecido, pois o programa de trabalho almejado revelou―se demasiado otimista. Em parte porque somente alguns poucos conceitos importantes possibilitam análises incontroversas — na verdade os conceitos obtêm sua identidade tanto pela sua estrutura interna como através da sua localização numa teoria mais ampla ou mesmo numa rede de doutrinas a que estão ligados. Por outro lado, à exceção do empirismo ou da doutrina atomista, inexiste um modo estruturado de determinar onde finaliza um processo de análise ou um modo de determinar a direção que o processo deve tomar (HONDERICH, 1995, p. 29―30). A análise lingüística ainda exerce considerável influência entre pensadores ocidentais, em especial os anglo―americanos.

Outra vertente que se ocupou do fenômeno da linguagem (mas com enfoque algo diverso) foi a Hermenêutica, grosso modo, a arte e a ciência da interpretação. Em termos mais precisos, Hermenêutica pode ser entendida como a teoria ou a filosofia da interpretação do sentido; porém, ela, enquanto tal, desafia uma direta e concisa definição (MESSER et al, 1990, p. 2). O nome de Hermes, o mensageiro dos deuses gregos, originou hermeneuein (interpretar) e hermeneutike (a arte de interpretar) (HONDERICH, 1995, p. 353). Esta proposta de trabalho tornou―se importante depois da Reforma, quando os protestantes necessitaram interpretar a Bíblia de modo mais acurado. A Hermenêutica medieval relacionava à Bíblia quatro níveis de significado: literal, alegórico, topológico (moral) e anagogico (escatológico), mas os reformistas insistiam na exegese literal (ou ‘gramatical’) e o estudo do hebreu e do grego. Modernamente, a Hermenêutica, enquanto empreendimento intelectual de investigação do humano, constitui―se atualmente num dos ramos mais importantes para viabilizar esta compreensão (ALBERTI, 1996), não obstante possuir algumas variantes. Sucintamente, podemos dizer que a Hermenêutica percorreu, em tempos recentes, três fases.

A primeira, com Friedrich E. D. Schleiermacher (1768―1834), o grande teólogo protestante e estudioso de Platão, que pronunciou suas famosas palestras a partir de 1818, delineando uma teoria sistemática da interpretação de textos e da fala. O objetivo do interpretador é compreender diretamente o texto, igualmente ou até melhor do que seu autor. Desde que não se tem conhecimento direto do que estava na mente deste, deve―se tentar estar cônscio das muitas coisas de que mesmo ele, o autor, poderia estar não consciente (SCHLEIERMACHER, 1999). Nesta visão, um texto é interpretado a partir de dois pontos de vista: ‘gramatical’, relacionando―se com a linguagem em que é escrito, e ‘psicológica’, em relação à mentalidade e o desenvolvimento do autor (v. SIMKA, 2003). Pode―se ter completa compreensão de ambos os aspectos desde que se tenha conhecimento completo da linguagem ou da pessoa. Portanto avança―se e recua―se entre os lados gramatical e psicológico, e nenhuma regra pode estipular exatamente como realizar isso. A partir disso em cada nível está―se envolvido num círculo hermenêutico, num esquema de contínua reciprocidade entre parte e todo (RUEDELL, 2000, p. 134―135).

A segunda fase ocorre com o biógrafo de Schleiermacher, Dilthey (1833―1911), que veio a estender a Hermenêutica ao entendimento de todo comportamento humano e seus produtos. Na sua proposta de um ‘método de compreensão’, o entendimento de um autor, artista ou agente histórico não é direto, mas por meio de analogias com a própria experiência daquele que estuda, daquele que pesquisa. No entanto, a base psicológica e subjetiva desse processo foi posteriormente substituída, deixando o método de compreensão de ser a tentativa de encontrar a idéia ou a modificação mental que foi a causa da expressão, transformando―se na localização da expressão no quadro de referência objetivo do significado humano, para o qual contribuem tanto o contexto como a linguagem e o ambiente da cultura. Assim, o processo da metodologia da compreensão proposto por Dilthey nunca está completo, já que sempre pode desvelar―se outra dimensão no modo como os significados se ligam (BLACKBURN, 1997, p. 102).

A terceira fase ocorre com Heidegger (1889―1976), que aprendeu Hermenêutica mediante o seu treino teológico com Dilthey. A Hermenêutica teológica considerou a interpretação de textos antigos; Dilthey preocupou―se em entender o cultural em contraste com a ciência natural e, principalmente, mas não exclusivamente, com a interpretação dos produtos das sociedades passadas. Agora, especialmente no Ser e Tempo (HEIDEGGER, 1989) ― obra que influenciou um dos maiores hermeneutas contemporâneos, Hans―Georg Gadamer ― Hermenêutica adquire um senso mais profundo e amplo. Esta atividade está relacionada com a interpretação do Ser da pessoa que interpreta textos e outros artefatos, que pode ser, p. ex., tanto um investigador cultural quanto um cientista natural. Heidegger realiza uma filosofia hermenêutica buscando interpretar o Dasein (Ser―aí, ou pré―sença), ampliando a discussão ao processo de constituição ontológica do homem, o que o constitui enquanto tal, posto que o homem é o único ente que fala e que, por isso, interrogando sobre si e sobre o mundo, possui a possibilidade de abertura ao Ser (BRUNS & TRINDADE, 2001, p. 71). A partir desta visão heideggeriana, a abordagem da existência humana deve ser hermenêutica desde que os seus aspectos fundamentais não constituem um campo aberto, mas ‘escondido’, ábdito, devido em parte à sua especificidade, em parte devido à tendência do Dasein em distorcer e obscurecer sua própria natureza e características.

Sob Heidegger, Hermenêutica ainda não apresenta regras ou uma teoria do interpretar: é precisamente a interpretação do Dasein. Mas a fenomenologia hermenêutica fornece um meio para a compreensão, desde que a característica central do Dasein é procurar entender a si e seu entorno, não no senso de uma interpretação desinteressada ou na emissão de uma asserção explicita, mas vislumbrando ‘possibilidades’ disponíveis a ela; enxergando um martelo, p. ex., como algo relacionado a consertar uma cadeira: todo simples pré―predicativo ‘ver’ do mundo invisível das disponibilidades é em si ao mesmo tempo um ver ‘interpretador―compreensivo’. Para Heidegger as palavras ‘mostram’ além de si mesmas, e necessita―se refletir sobre isso, não simplesmente sobre o texto, como anteriormente, de modo a compreender o que é dito e realizado pelo Homem (v. GUMBRECHT, 2003, p. 7).

Modernamente, alguns estudiosos identificam outras variantes da inquirição hermenêutica, tais como as hermenêuticas materialistas de Sandkühler e a de Lorenzer, e a hermenêutica fenomenológica de Paul Ricoeur (CESAR, 1998). Em suma, hermenêutica refere―se a um método de interpretação, primeiro de textos, depois do universo social, histórico e psicológico e, posteriormente, do Ser. Ela, enquanto atividade que investiga o humano pode ser visualizada, aproximadamente, em três áreas (ou tendências, conf. BLEICHER, 1992): hermenêutica metodológica (ou teoria hermenêutica), hermenêutica ontológica (ou filosofia hermenêutica), e hermenêutica crítica. Porém, esta diferenciação não é consensual (PALMER, 1988, p. 33).

Tanto a filosofia analítica quanto a hermenêutica assumem, à maneira de cada qual, o primado da linguagem (RUEDELL, 2000, p. 66). As duas se confrontam com o problema da compreensão, mas a analítica pretende se constituir em torno de racionalidades comuns, enquanto que a hermenêutica, como teoria da interpretação, questiona pelo singular, pelo diverso em cada discurso, e continua inquirindo por aquilo que resta distante, incompreendido, mesmo que concluídos todos os procedimentos analíticos. Com Saussure, a linguagem se nos apresenta como um todo de sentido, que se estabelece a partir da contribuição de projetos individuais, destinando―se a posteriores compreensões individuais (quer dizer, subjetivas).

Entre as vertentes analítica e hermenêutica subsiste uma evidente diferenciação de enfoque no estudo da linguagem: pode―se dizer que a primeira reduz a linguagem à unidade mínima que é o significado, enquanto que a segunda trabalha com o sentido. Antes de se visualizar uma oposição quase que mutuamente exclusiva entre elas (visto que há críticas de parte a parte), endossamos a posição de STEIN (1996, p. 79―80; 2002, p. 19), [corroborada em grande parte por RORTY (2000)] que explicita que “a filosofia analítica sem a hermenêutica é vazia e a hermenêutica sem a filosofia analítica é cega”. Em outros termos, parafraseando o autor, se a filosofia analítica não atentar para determinados temas fundamentais observados pela hermenêutica, não se tem assunto ou conteúdo; se a hermenêutica não considerar os instrumentos formais da analítica, deixa de lado importantes recursos para averiguar verdadeiramente as fundamentais questões da linguagem. Na verdade, enxergo nestas duas vertentes, ainda que diferentes, mais complementaridade (e até suplementariedade) do que uma relação de mútua ‘exclusão’ (com o que parece também concordar TRACY, 1997, p. 25―26, nota de rodapé 6).

O posicionamento da hermenêutica revela que é requerida a interpretação de um texto (ou discurso) porque este sempre traz a marca individual de seu autor ou interlocutor (RUEDELL, 2000, p. 68), algo que os métodos analíticos ou empiricistas não consideram ou não podem alcançar. Confrontado em optar pelo caminho que possa garantir o que se considera uma verdade, o pesquisador (ou intérprete) tem que discernir o que constitui o explicar e o que constitui o compreender (ou, explicação e compreensão). O Professor Amatuzzi indaga: “O que significa explicar? Significa descobrir a causa própria de algum evento ou a função na qual ele ocorre. No âmbito da Psicologia, enquanto estudo da subjetividade, o mais importante não parece ser a atribuição de causalidade (ou de funcionalidade), mas sim a compreensão” (AMATUZZI, 2003, p. 64). Na verdade, esta distinção designa a oposição metodológica entre as ciências da natureza e as ciências do espírito. De minha parte, creio que diante da natureza o procedimento indicado (e, ao que tudo indica, ‘sacramentado’) é o da explicação. Por outro lado, se vamos trabalhar com informações pertinentes às vivências do espírito, com suas peculiaridades, creio, com Dilthey, que devem ser compreendidas. Sob este autor, conforme afirma CORETH:

A compreensão refere-se a formas objetivas históricas, cujas estruturas e legalidades devem ser apreendidas. São ‘objetivações da vida’ (...), objeto das ciências do espírito (...) ; na medida em que brotam da vida e objetivam o evento vital, a ‘vivência’ constitui o acesso à compreensão. Na vivência se abre a unidade da vida, pela qual se dá a compreender cada uma das manifestações vitais. Logo, a compreensão se funda na vivência: ‘A compreensão pressupõe uma vivência’. (CORETH, 1973, p. 21 - Ver também ALBERTI, 1996, seção 1.2.4. – ‘Hermenêutica como fundamento das ciências humanas’).

Quando dizemos vivência, amplia-se enormemente o escopo de trabalho (v. Glossário) e, também nesse âmbito, as ferramentas de análise de cunho empiricista se mostram, como eu disse, limitadas. Similarmente, mas adicionando outros aspectos, concordo com a afirmativa de WAKEFIELD de que a

Hermenêutica é potencialmente relevante para a psicologia porque texto pode ser considerado num sentido amplo o suficiente para referir-se à conduta, verbalização e estados mentais conscientes da pessoa que está sendo tratada ou estudada. Na terapia e no laboratório cognitivo, o psicólogo rotineiramente esforça-se para desvelar e reconstruir aspectos do sistema de significados da pessoa, subjazendo a estes estados manifestos, e esta atividade pode ser considerada uma instância possível para a hermenêutica (WAKEFIELD, 1990, p. 132). (itálico do autor)

Gadamer afirma que o conceito de ‘texto’ constitui um desafio peculiar: ele pergunta, entre outras questões, que relação guarda o texto com a linguagem, que elemento da linguagem pode passar para o texto, o que é consenso entre os falantes, o que significa que possa haver textos comuns? Ele mesmo responde, inicialmente, que “o texto é algo mais que o título de um campo de objetos da investigação literária. A interpretação é muito mais que a técnica de exposição científica de textos. No século XX ambos os conceitos têm modificado radicalmente seu grau valorativo em nossos esquemas mentais e em nossa concepção de mundo” (GADAMER, 2002, p-. 388-389).

Além disso, como aponta TAYLOR (1971), hermenêutica representa uma tentativa de elucidar, de averiguar sentido em um objeto de estudo; gerar uma interpretação clarificadora quando algo está confuso, incompleto, nebuloso, aparentemente contraditório; decidir sob condições de incerteza. No campo da Psicologia (principalmente no exterior e marginalmente em nosso país) a hermenêutica é reconhecida como instrumento válido para a interpretação da ação humana. Segundo MEICHENBAUM (1990, p. 117) a Hermenêutica, como uma abordagem para a compreensão, realça a necessidade de reconstruir o ‘mundo de sentido’ subjacente aos eventos. Do mesmo modo que um estudioso da Literatura ou da Bíblia tenta compreender uma passagem particular referindo-se à totalidade ou acervo maior no qual seu trabalho se inscreve, o estudante do comportamento humano deve referir-se, segundo o autor, ao contexto histórico e cultural, em constante mudança. O mesmo comportamento ostensivo pode deter diferentes significados e necessita-se acessar e determinar estes significados se é desejado compreender a natureza da conduta humana (Ibidem). Além disso, a Hermenêutica é uma abordagem que parece apropriada para a análise psicológica de pronunciamentos, depoimentos e histórias humanas em seus variados matizes, aspectos, dimensões, dilemas (CAMPOS, 2001) e sentidos – e realizar as suas compreensões.

Tendo em vista estas razões, e assumindo mais amplamente neste estudo de psicologia da religião que “existe uma linguagem religiosa que se faz até psicológica” (AMATUZZI, 2003, p. 70), irei adotar uma metodologia de trabalho hermenêutica, baseada nas considerações de Hans-Georg GADAMER (nascido em 1900 e falecido em 2002), sob inspiração em SCHLEIERMACHER (1999) e complementada, quando couber, pelos esclarecimentos que se pode auferir da análise lingüística. Gadamer não questiona com sua hermenêutica a eficácia da ciência natural, e sim a determinação metodológica da ciência, nas suas condições de possibilidade. Gadamer, tributário das contribuições de Scheleiermacher, Dilthey e Heidegger, trabalha com o ponto de vista da ‘pertença’ do ser, e não o ponto de vista do ‘procedimento’, da metodologia científica para estabelecer a verdade (RUEDELL, 2000, p. 104, GADAMER, 1999, p. 664―671). É o que explanaremos a seguir.


O enfoque da Hermenêutica

Vimos que o modo como os objetos se dão ao Homem constitui-se em linguagem, e que não existe experiência efetivamente humana que não seja mediada pela linguagem. Assim, a característica abrangente da linguagem implica que ela, enquanto fala sobre o mundo, ou ela, enquanto seja o mundo, também é apanhada enquanto linguagem. Dito de outro modo, afirmo que a relação entre pensamento que visa conhecer algo no mundo e linguagem é uma relação necessária. Por exemplo, quando pergunto o que é um juízo: o que é o juízo que faço sobre o objeto, afirmando ou negando algo? O que é uma sentença? O que são proposições e enunciados? A relação do sujeito que pensa e o objeto pensado deve ter um sentido e, desde que falamos de dentro da linguagem sobre a linguagem (ou seja, não conseguimos nos colocar de fora da linguagem), os objetos terão possibilidade de estar ao alcance do homem se forem expressos como significados. O Homem tem uma concepção do uso da linguagem, e ela se constitui como concepção de acesso ao mundo como totalidade. Estamos envolvidos com os objetos do mundo e descrevemos o mundo no qual se dão os objetos (STEIN, 1996, p. 25; 61). Situados num mundo humano (que é primacialmente linguagem), temos que averiguar como se dá a interpretação e a compreensão destes sentidos e significados, tanto no nível pessoal, no nível que respeita aos demais, no nível da(s) nossa(s) mútua(s) relação(ões) e, por fim, como se nos assimilam todas estas experiências em nossos horizontes. Temos, de um lado, que todo sentido é sempre projetado dentro dos limites de uma linguagem (RUEDELL, 2000, p. 108) e, de outro, que, sob Dilthey, ‘compreender é reviver sentidos’ (BARBOSA, 1974, p. 157; MACHADO NETO, 1975, p. 428 e 431). E o que constitui a compreensão, esta experiência (marcadamente lingüística) de sentido?

Gadamer, em sua obra―prima Verdade e Método (GADAMER, 1999), visou averiguar em sua investigação não “aquilo que queremos ou fazemos, mas aquilo que além do fazer e querer acontece conosco” (v. também STEIN, 1996, p. 69). Ele parte de um conceito que considera central para seus estudos, que é a expressão experiência (Erfahrung) que, associada à linguagem, amplia-se como experiência vital, experiência vivida, ou seja, uma vivência (Erlebnis). Por oposição às abstrações da compreensão e à mera ordenação conceitual das sensações em “experiências”, a vivência refere-se à totalidade e à infinidade da existência humana conforme já referenciamos anteriormente (CORETH, 1973, p. 21 - Ver também ALBERTI, 1996, seção 1.2.4. – ‘Hermenêutica como fundamento das ciências humanas’). Por isso Gadamer afirma que “manteve o conceito ‘hermenêutica’, que o jovem Heidegger empregou, porém não no sentido de uma doutrina de método, mas como uma teoria da experiência real, que é o pensamento” (GADAMER, 1999, p. 25). ‘Experiência’ é aquilo pelo qual Gadamer nos sugere possuirmos uma possibilidade de representação ou de descrição de uma totalidade, e essa totalidade é precisamente totalidade da experiência de mundo (GADAMER, 2002, p. 41).

O impulso fundamental para o trabalho de Gadamer foi dado por Heidegger quando colocou novo fundamento ontológico para a hermenêutica, mas o enfoque gadameriano foi a questão da chamada hermenêutica da facticidade. Esta expressão significa que a interpretação do mundo é a interpretação da condição fática do ser-humano-que-experiencia, que engloba todos os elementos históricos e culturais, enraizados na historia do Homem, considerando que ‘faticidade’ é o caráter próprio da condição humana pelo qual cada homem se encontra sempre já comprometido com uma situação não escolhida.

Outro conceito que ajuda a compreender este aspecto da facticidade é o da ‘fusão de horizontes’. Gadamer explicita que, colocando à prova diuturnamente nossos preconceitos [temos que distinguir os verdadeiros preconceitos — que produzem compreensão — dos falsos, que produzem os mal―entendidos (GADAMER, 1999, p. 447)], estamos formando constantemente nosso horizonte, nossa visão da totalidade do presente: “a totalidade não é um objeto, mas o horizonte de mundo que nos rodeia e no qual vivemos” (GADAMER, 2002, p. 577). “Parte dessa prova é o encontro com o passado e a compreensão da tradição da qual nós mesmos procedemos” (GADAMER, 1999, p. 457). Mas o horizonte do presente, não se formando à margem do passado, não existe por si mesmo, como não existem horizontes históricos a serem ganhos; antes, a fusão destes horizontes (que significa a obtenção do horizonte de interpretação — GADAMER, 1999, p. 578) é o que constitui o compreender. A fusão se dá constantemente na vigência da tradição, onde o velho e novo (sem que um ou outro se destaquem explicitamente por si mesmos) crescem juntos para configurar “uma validez vital” (GADAMER, 1999, p. 457).

Na intenção de imbuir sua hermenêutica com uma pretensão de universalidade, Gadamer dá ao fenômeno hermenêutico um substrato lingüístico (eu digo: essencialmente do humano), algo que nenhum autor que lhe antecedeu na tradição hermenêutica tinha acentuado. Todos apresentavam a Hermenêutica como um instrumento, uma ferramenta de certo interesse para o conhecimento histórico, na interpretação da cultura. Gadamer afirma, quase ao final do livro, uma frase que obteve muita repercussão: “Ser que pode ser compreendido é linguagem” (GADAMER, 1999, p. 687 e 703). O que se pode compreender constitui linguagem, querendo dizer: é tal que se apresenta por si mesmo à compreensão. Aquilo como o que algo se apresenta a si mesmo faz parte de seu próprio ser. Em outra passagem, Gadamer amplia o que deve ser entendido aqui: “Ser que pode ser experimentado e compreendido [é linguagem]” (GRONDIN, 2000, p. 210). Existe uma experiência de linguagem que é mais do que nós mesmos, na medida que linguagem é parte de nossa facticidade, linguagem é parte daquilo em que estamos enraizados (STEIN, 1996, p. 73). “Representar―se, ser compreendido, são coisas que não somente correm juntas, (...) — ser especulativo, distinguir―se de si mesmo, representar―se, ser linguagem que enuncia um sentido, tudo isso não o são somente a arte e a história, mas todo ente na medida em que pode ser compreendido. A constituição especulativa do ser que subjaz à hermenêutica tem a mesma amplitude universal que a razão e a linguagem” (GADAMER, 1999, p. 690).

Gadamer explicita na sua hermenêutica o que alguns parágrafos de Ser e Tempo de HEIDEGGER (1989) atribuíam ao compreender. “Já em Ser e Tempo a verdadeira questão não era de que maneira se pode compreender o ‘ser’, mas de que maneira a compreensão é ‘ser’. A compreensão do ser constitui a caracterização da pré―sença humana” (GADAMER, 2002, p. 150). Compreender não é mais apenas conceber um novo sentido do texto, é um compreender que faz parte do ser humano como um existencial. E que é um existencial? É uma categoria pela qual o Homem se constitui (como p. ex. também a facticidade, a possibilidade - STEIN, 1996, p. 58). Portanto, o modo de ser no mundo é um modo de compreender; o ser no mundo é um compreender e interpretar. Por um lado, a verdadeira compreensão nunca se dá por si ou como algo óbvio: ela tem sempre que ser buscada, em cada caso, como individualizada (RUEDELL, 2000, p. 68). Mas, por outro lado, compreender, como coloquei, não se apresenta meramente como um agir daquele que interpreta, mas muito mais como um acontecer no qual estão abarcados o objeto de interpretação e também o intérprete. Assim, a percepção de que as expressões humanas contêm um componente de significação, que tem que ser reconhecido como tal por um sujeito e transposta para seu próprio sistema de valores e significados (ou seja, interpretado), originou o desafio e o problema da hermenêutica: saber como é possível este processo, e como tornar objetivas as descrições de sentido subjetivamente intencionais, tendo em conta o fato de passarem pela subjetividade do próprio intérprete (BLEICHER, 1992, p. 13).

A partir destas considerações sucintas sobre alguns aspectos do olhar gadameriano da hermenêutica, em que consistiria, efetivamente, o caminhar investigativo sob esta vertente? Trata―se fundamentalmente de uma postura, frente a textos, principalmente, visto que não se possui, ainda hoje na área das ciências humanas, uma maneira de desenvolver a informação, a pesquisa, a interpretação, sem que, de um modo ou de outro, não se tenha que averiguar ou endereçar textos (STEIN, 1996, p. 95). Gadamer parece aconselhar o aproveitamento de certos aspectos dos modelos que foram propostos desde o começo da hermenêutica, incluindo e assimilando seus insights posteriores. Ele afirma que “os problemas da expressão lingüística já são, na realidade, problemas de compreensão. Todo compreender é interpretar, e todo interpretar se desenvolve no médium de uma linguagem que pretende deixar falar o objeto e é, ao mesmo tempo, a linguagem própria do seu intérprete” (GADAMER, 1999, p. 566―567).

O fenômeno hermenêutico se revela como um caso especial da relação mais ampla entre falar e pensar, cuja intimidade ‘misteriosa’ implica na ocultação da linguagem no pensamento. Gadamer aponta que assim como na conversação, a interpretação configura um círculo fechado na dialética da pergunta e resposta. A compreensão começa onde algo nos interroga. “Esta é a condição hermenêutica suprema. Sabemos agora o que ela exige com isso: a de suspender por completo os próprios preconceitos. Porém a suspensão de todo juízo e, a fortiori, de todo preconceito, visto logicamente, tem a estrutura da pergunta. A essência da pergunta é a de abrir e manter abertas possibilidades” (GADAMER, 1999, p. 447―448). Ele reafirma isso em outro texto: “O primeiro elemento com que se inicia a compreensão é o fato de que algo nos interpela. É a primeira de todas as condições hermenêuticas. Agora vemos o que se exige para isso: uma suspensão fundamental dos próprios preconceitos. Toda suspensão de juízos, porém, começando pelos preconceitos, logicamente falando, possui a estrutura da pergunta” (GADAMER, 2002, p. 80―81; BLEICHER, 1992, p. 154). É, complementando, o que eu aludi acima quando falei das condições da faticidade e da fusão de horizontes.

Considerando―se os raciocínios, se o estudioso desejar apreender um enunciado em sua verdade, não pode levar em conta apenas o conteúdo que ele apresenta, visto que todo enunciado tem uma motivação, ou seja, tem pressupostos que ele não enuncia (Gadamer diz: a tudo o que é dito, pode―se perguntar com razão: ‘Por que dizes isso?’ [GADAMER, 2002, p. 181]). Somente quem pensa também esses pressupostos pode dimensionar de modo adequado a verdade de um enunciado; dito de outra forma, um enunciado só consegue tornar―se compreensível quando no dito compreende―se também o não―dito. Gadamer afirma que a última forma lógica da motivação de todo enunciado é a pergunta (GADAMER, 2002, p. 67). Ele aduz que não é o juízo, mas a pergunta que tem o primado na lógica, como já testemunham historicamente o diálogo platônico e a origem dialética da lógica grega. O primado da pergunta frente ao enunciado significa, que o enunciado é essencialmente resposta. Não há um enunciado que não seja uma resposta. Complementarmente, é essencial que toda pergunta tenha um sentido, e ainda sentido de orientação, que vai condicionar a única direção que a resposta pode adotar se quiser ser adequada, com sentido. Sentido do que é correto tem que corresponder à orientação traçada por uma pergunta. “Somente pode possuir algum saber aquele que tem perguntas, mas as perguntas compreendem sempre a oposição do sim e do não, do assim e do diverso. (...) A dialética da interpretação sempre precedeu a dialética de pergunta e resposta. É esta que determina a compreensão como um acontecer” (GADAMER, 1999, p. 538; 684). ‘Acontecer’ onde estão o texto e aquele que interpreta o texto – a partir daí pode surgir, como falei, a compreensão.

Transpondo estas orientações para o trabalho com textos, a estrutura da pergunta―e―resposta se mantém. O fato de que um texto se converta em objeto de interpretação quer dizer que coloca uma pergunta ao intérprete (GADAMER, 2002, p. 13). Compreender um texto quer dizer compreender essa pergunta. Temos isso quando se ganha o horizonte hermenêutico, que significa o horizonte do perguntar, no qual se determina a orientação de sentido do texto. Quem quer compreender um texto tem que de retroceder com suas perguntas mais além do que foi dito. Tem que entendê―lo como respostas a uma pergunta para a qual precisamente se constitui como resposta (GADAMER, 1999, p. 544). Um texto só é compreendido no seu sentido quando se alcançou o horizonte do perguntar, que como tal contém necessariamente também outras respostas possíveis. O sentido de uma frase é relativo à pergunta além daquilo que se diz nela. Dito de outro modo, a reconstrução da pergunta, a partir da qual o sentido de um texto se compreende como uma resposta passa, antes, ao próprio perguntar do intérprete.


Efetivamente ao lermos um texto, estamos reconstruindo esse texto e essa reconstrução é uma interpretação (STEIN, 1996, p. 92). Compreender a questionabilidade de algo é, antes, sempre perguntar; quando se pergunta, deixam―se abertas possibilidades de sentido. O texto tem que ser entendido como resposta a um verdadeiro perguntar. A dialética da pergunta e resposta permite que a relação da compreensão se manifeste como uma relação recíproca, semelhante a uma conversação. Um texto não conversa com o intérprete como um tu; é o intérprete, que o compreende, que tem que trazer o texto à fala, a partir dele (intérprete) mesmo. No entanto, “(...) este trazer―à―fala, próprio da compreensão, não se corporifica numa intervenção arbitrária, nascida de origem própria, mas está referida, enquanto pergunta, à resposta latente no texto” (GADAMER, 1999, p. 555).


A práxis hermenêutica de Hans-Georg Gadamer

No campo da teoria do Método, quando se fala em ‘procedimento’, pensa―se em regras, normas para certa categoria de agir; pensa―se em instrumentos, sistema ou coleção de ‘procedures’. No âmbito da hermenêutica, isto não se desenvolve bem assim. Na abordagem descrita por Gadamer o percurso constitui antes uma espécie de “visão da totalidade, que se expressa fundamentalmente a partir de uma idéia de que existe a dificuldade de desenovelar a relação sujeito―objeto ou da idéia que existe um sentido no qual se desenvolve um discurso a partir de determinadas circunstâncias ou a partir de determinado texto” (STEIN, 1996, p. 96). Esta postura implica inclusive em não afastar a contribuição para o esclarecimento e a compreensão que possa ser oferecida por vertentes que criticam a posição hermenêutica, como p. ex. pelas análises semânticas. Na visão de Gadamer, como já vimos, não se pode, enquanto hermenêutica, desprezar também os elementos lógico―analíticos. Inclusive a hermenêutica efetivamente fornece instrumentos importantes que o método puramente analítico e o método dialético nem pressupunham (STEIN, ibidem). Ainda que se acuse a hermenêutica pelo fato desta considerar a linguagem uma espécie de acontecer (do qual se retira o significado) e, por isso, como sendo menos capaz de usar instrumentos críticos para interpretar, isto não traduz a realidade. Conforme afirma Gadamer,

As ciências hermenêuticas ou ciências do espírito estão sujeitas aos mesmos critérios de racionalidade crítica que caracterizam o método em todas as ciências, embora seus interesses e procedimentos sejam substancialmente diversos dos que animam as ciências naturais. (...) Tudo que as ciências podem conhecer, a hermenêutica deve levá―lo à relação de consenso, onde todos nós estamos. (...) Trata―se das questões que determinam todo o saber e fazer humanos, essas questões ‘máximas’ que são decisivas para o ser humano enquanto tal e para sua escolha do ‘bem’ (GADAMER, 2002, p. 368, 369).

Gadamer em outra passagem esclarece que esta atividade não constituiria “ ... tanto uma doutrina do método das ciências do espírito. A hermenêutica é, muito antes, uma visão fundamental acerca do que significa em geral, o pensar e o conhecer para o homem na vida prática, mesmo se trabalhando com métodos científicos” GADAMER (2000b, p. 18). ROHDEN (2000, p. 170) afirma que, "rigorosamente falando, a hermenêutica filosófica não possui um método como as ciências. Nesse sentido, é uma contradição falar em método hermenêutico, mas fazemo-lo por questões que facilitam nossa reflexão. Talvez o 'jogo', o 'círculo hermenêutico', o 'diálogo', caracterizem melhor a 'metodologia' da hermenêutica (...)".

Esta questão de haver ou não método na pesquisa interpretativa mascara, ao fim e ao cabo, uma necessidade de validar os achados de pesquisa, isto postulado ocasionalmente como mais assegurado, grosso modo, quando se utiliza uma metodologia ‘densa’. Na verdade, vejo aqui uma espécie de continuum, onde se pode identificar diferentes graus de uso de metodologia(s) por parte de diferentes designs de pesquisa. Martin J. PACKER & Richard B. ADDISON (1989) conduzem interessante discussão a respeito disso na Introdução de seu livro Entering the Circle – Hermeneutic Investigation in Psychology e afirmam, entre outros aspectos, que mesmo o método científico não constitui técnica e procedimento livre de interpretação (p. 33). Gadamer aduz mais esclarecimentos sobre estes aspectos ‘metodológicos’ da Hermenêutica frente à Ciência no texto Posfácio referente à 3a. edição (1972), in GADAMER (2002, p. 508-544) dissolvendo muito desta pretensa antinomia.

Mas ainda assim, concretamente, existiria uma ‘ferramenta metódica’ do fazer hermenêutico? Inicialmente, Gadamer adverte, sobre a Hermenêutica, que a

“ ... sua tarefa não é desenvolver um procedimento de compreensão, mas esclarecer as condições sob as quais surge compreensão. Mas essas condições não têm todas o modo de ser de um ‘procedimento’, ou de um método de tal modo que quem compreende poderia aplica-las por si mesmo – essas condições têm de estar dadas. Os preconceitos e opiniões prévias que ocupam a consciência do intérprete não se encontram à sua disposição, enquanto tais. Este não está em condições de distinguir por si mesmo e de antemão os preconceitos produtivos, que tornam possível a compreensão, daqueles outros que a obstaculizam, os mal-entendidos. Esta distinção deve acontecer, antes, na própria compreensão e é por isso que a hermenêutica tem de indagar como se dá isso” (GADAMER, 1999, p. 442-443).

Ainda que eu entenda (e endosse) a postura hermenêutica na pesquisa, vejo-me como que necessitando, ainda, satisfazer o vigilante cartesiano (leia-se este último conforme o sentido ‘3’ do Aurélio – FERREIRA, 1999, p. 418) que reside em mim (e em alguns colegas humanistas), inexoravelmente oriundo da minha formação acadêmica. Tendo isto em mente, investiguei o que poderia concreta e efetivamente materializar para o estudioso no seu fazer hermenêutico tal postura, sem conter o ‘ranço’ de constituir em si uma coletânea integrada de procedimentos e regras insensíveis e despersonalizadas. Em minha pesquisa, identifiquei um ‘proceder-se’ que PALMER (1988, p. 87) descreve como o ‘círculo hermenêutico’, a partir da compreensão. Esta consiste essencialmente numa operação referencial; compreende-se algo pela comparação deste com algo que é sabido de antemão. O que se compreende é em si composto de unidades integradas, ou um todo, formado por partes. Segundo o autor, o todo define a parte individual, e as partes juntas formam o todo. Por exemplo, uma frase completa constitui um todo, e pode-se compreender o significado de uma palavra observando-a em relação à totalidade da frase; reciprocamente, o sentido da frase é alcançado dependentemente do significado de cada palavra individualmente. Por extensão, um conceito obtém seu significado a partir do contexto ou horizonte donde se situa, e o horizonte se constitui a partir dos elementos significantes. Mediante a interação dialética entre o todo e a parte, cada uma provê sentido à outra e, portanto, ‘compreensão é circular’ (ibidem). Pelo motivo do sentido emergir deste ‘círculo’, é denominado ‘círculo hermenêutico’.

Ainda de acordo com PALMER (ibidem), este conceito envolve certa contradição lógica visto que, em se necessitando captar a totalidade antes de ser possível entender as partes, disto decorre que nada será compreendido. Por outro lado, deve-se objetar que a lógica não responde totalmente pelos trabalhos de compreensão. De qualquer modo, um salto ao círculo hermenêutico ocorre e compreende-se a totalidade e as partes conjuntamente: para operar efetivamente, este círculo assume um elemento de intuição.

Gadamer ratifica esta ‘norma’ hermenêutica, na qual subjaz a relação circular, regra esta que não constitui novidade alguma, posto que postulado de antemão pela retórica antiga e sistematizado por Schleiermacher (GADAMER, 1999, p. 275; MESSER et al, 1990, p. 7). Interpretação ocorre dentro de um círculo no qual as partes são aclaradas mediante alguma compreensão da totalidade que, por sua vez, é captada pela compreensão das suas partes constituintes. Dito com outras palavras, tem-se de compreender o todo a partir do individual e o individual a partir do todo; o movimento da compreensão vai constantemente do todo à parte e desta ao todo. ‘O círculo hermenêutico descreve a natureza contextual do conhecimento’ (MESSER et al, ibidem).

Em seu ensaio de 1959 denominado Sobre o círculo da compreensão, GADAMER (2002, p. 72-81) sintetiza os fundamentos do que eu digo ‘o fazer hermenêutico’ mediante o círculo hermenêutico (ou o círculo da compreensão). Aqui, a antecipação de sentido que comporta o todo ganha uma compreensão explícita através do fato de as partes (determinadas pelo todo) ‘determinarem por seu lado esse mesmo todo’ (p. 72). A tarefa consiste em ampliar a unidade do sentido compreendido, como que por círculos concêntricos. O critério que se utiliza para constatar a justeza da compreensão, a cada vez, é a concordância de todas as partes singulares com a totalidade; dito de outro modo, se esta concordância inexistir, fracassa a compreensão. O objetivo de todo entendimento e compreensão é o acordo quanto à coisa.

Outro princípio afirmado por GADAMER (2002, p. 73) é aquele fundamental de toda interpretação: é preciso compreender um texto a partir de si próprio, e o autor complementa com o critério de que deve haver uma abertura ao que o outro diz, de modo a integrá-lo à própria expectativa múltipla de sentido, carregada pelo investigador. Ele continua:

A tarefa da hermenêutica transforma-se espontaneamente num questionamento voltado para as coisas elas mesmas que sempre a codetermina. (...) Quem quiser compreender um texto está disposto a deixar que ele diga alguma coisa’. Por isso, uma consciência formada hermeneuticamente deve ser de antemão receptiva à alteridade do texto. Essa receptividade não pressupõe, no entanto, uma ‘neutralidade’ quanto à coisa, nem um anulamento de si mesmo, incluindo a apropriação seletiva das próprias opiniões e preconceitos. Há que se ter consciência dos próprios pressupostos a fim de que o texto se apresente a si mesmo em sua alteridade, de modo a possibilitar o exercício de sua verdade objetiva contra a opinião própria. (ibidem, p. 76).

Vemos que a compreensão do texto vai ser determinada sempre pelo movimento pré-apreensivo da compreensão prévia. Mas Gadamer afirma que esta concepção prévia deve ser tal que permita efetivamente ocorrer a compreensão e, para isso, necessita-se pressupor certa completude, que vai funcionar como um guia de todo o compreender. ‘Só é compreensível aquilo que realmente apresenta uma unidade de sentido completa. Pressupomos essa completude, p. ex., quando lemos um texto. Somente quando esta pressuposição se mostra inverificável, isto é, quando o texto se torna incompreensível, é que a questionamos e duvidamos, p. ex., da transmissão e procuramos corrigi-la. (...) A concepção prévia da completude mostra-se ela mesma cada vez determinada por um conteúdo’ (ibidem, p. 77-78). O preconceito da completude vai implicar que um texto deve expressar de modo pleno sua opinião e também expressar que aquilo que diz é a verdade completa. Compreender significa entender-se na coisa em primeiro lugar, e em segundo, apartar e compreender a opinião do outro como tal.

Instalado agora a ‘mesa de trabalho’, a ‘bancada’ onde irei realizar o escrutínio, posso exemplificar, ilustrar alguns momentos que estão subsumidos neste ‘fazer hermenêutico’. Inicialmente digo que, com Gadamer,

O primeiro elemento com que se inicia a compreensão é o fato de que algo nos interpela. É a primeira de todas as condições hermenêuticas. Agora vemos que o que se exige para isso: uma suspensão fundamental dos nossos preconceitos Toda suspensão de juízos, porém, começando pelos preconceitos, logicamente falando, possui a estrutura da pergunta. A essência da pergunta é colocar possibilidades e mantê-las em aberto (GADAMER, 2002, p. 80-81). (itálico do autor)

Não é colocar de lado nosso(s) preconceito(s), deixando que outro preconceito se interponha em seu lugar; antes é considerar que o preconceito deve ser exercido frente aos outros, para que todos se confrontem, e que assim sejam reconhecidos como juízos. Gadamer diz que “quem quiser compreender um texto deverá sempre realizar um projeto” (GADAMER, 2002, p. 75). Investigando o texto, o pesquisador projeta de antemão um sentido do todo, tão logo ali se mostra um primeiro sentido. Esse primeiro sentido somente se revela porque o pesquisador lê o texto já sempre com certas expectativas, na perspectiva de um determinado sentido. A compreensão daquilo que contém o texto consiste, segundo Gadamer, na elaboração desse projeto prévio, que sofre uma constante revisão à medida que aprofunda e amplia o sentido do texto.

O que ajuda a esclarecer o aspecto de projeto é o que se denomina situação hermenêutica (GADAMER, 1999, p. 494―495, 578, 683). Consubstancia―se um método adequado de investigação na medida que o intérprete é capaz de elaborar, desenvolver e dar forma àquela consciência de que o mesmo sempre está vinculado ao seu objeto e que o cumprimento de suas análises depende do auto―controle, do(s) método(s) que emprega, dos procedimentos de avanço no reconhecimento do caminho e do comportamento do objeto sob escrutínio. Na verdade, a situação hermenêutica é uma situação que cada pesquisador já leva acriticamente consigo, e cada área de investigação com que se trabalha exige o desenvolvimento deste lugar privilegiado de interpretação (STEIN, 1996, p. 100). Para isso deve―se delimitar criteriosa e cuidadosamente o objeto, e ser cônscio de que o caminho de investigação aludido acima tem muito a ver com a biografia do investigador, com sua formação intelectual, com o que ele já carrega previamente de repertório conceitual. Este caminho guiou, mesmo anteriormente, o cientista―investigador―intérprete na aproximação de textos, sua triagem e articulação, desembocando num projeto de pesquisa. Sem este percurso, a investigação futura não se desenvolve; sem isso não se faz pesquisa. Em outras palavras, inexiste grau zero no início da investigação.
Como vimos, compreende―se um texto na medida em que se realiza um projeto: a interpretação inicia-se a partir de conceitos prévios que vão sendo paulatinamente substituídos por conceitos mais apropriados. Como afirma GADAMER,

...esse constante projetar de novo é que perfaz o movimento semântico de compreender e de interpretar. Quem procura compreender está sujeito a errar por causa das opiniões prévias, que não se confirmam nas coisas elas mesmas. Dessa forma, a constante tarefa do compreender consiste em elaborar projetos corretos, adequados às coisas, isto é, ousar hipóteses que só devem ser confirmadas ‘nas coisas elas mesmas’. Aqui não há outra ‘objetividade’ além da elaboração da opinião prévia a ser confirmada. Faz sentido afirmar que o intérprete não vai diretamente ao ‘texto’, a partir da opinião prévia pronta e instalada nele. Ao contrário, põe à prova, de maneira expressa, a opinião prévia instalada nele a fim de comprovar sua legitimidade, o que significa, sua origem e sua validade (GADAMER, 2002, p. 75; ver também p. 65).
Na pesquisa visa―se, no fundo, ampliar o universo lingüístico do investigador, o conjunto de temas e o conjunto de conceitos corrrelatos, de tal modo que se possa aproximar cada vez mais do objeto de modo preciso (é o que me conduziu naturalmente a compor o Glossário anexo). O estudioso deve partir de um aparato conceitual organizado, coerente com a linguagem que se pretende rigorosa e o objeto que se apresenta. Objeto e sujeito não se separam, visto pertencerem a uma determinada tradição, que será devidamente ampliada. Um ponto importante aqui é a evolução da confrontação da linguagem do intérprete com a linguagem dos textos, permitindo ou não a que ele situe adequadamente estes textos em seus contextos. Isto vai se revelar crítico no aspecto da elaboração da análise, visto que o discurso do intérprete, que objetiva claro, rigoroso, não deverá permanecer exterior à coisa, por inexistir separação completa entre sujeito e objeto, nas ciências humanas. Outro objetivo subsidiário aqui é alcançar o máximo de intersubjetividade, no sentido de que os textos que serão produzidos sejam lidos pelos outros, sejam por eles entendidos, ainda que oriundos da subjetividade do intérprete, posto que o mesmo não é sujeito solitário na investigação (STEIN, 1996, p. 106). Outro aspecto ‘metodológico’ que se apresenta no fazer hermenêutico é quanto às condições de verdade da compreensão e à interpretação. Como se distingue aí entre verdade e falsidade? Postula―se, segundo RUEDELL,

... um padrão ou uma norma de compreensão a que se deve seguir. O problema é como se estabelece esta norma, ou então, quem a estabelece. Na compreensão de expressões lingüísticas, a referência primordial, é o autor da expressão: a realidade à qual se devem adequar a compreensão e a interpretação (para que sejam verdadeiras) é o sentido intencionado pelo autor. Interpretação verdadeira é aquela que for fiel a esse sentido originário. Em se tratando de compreensão e interpretação do sentido de expressões lingüísticas, fala―se, porém, mais em correção do que em verdade, reservando a qualificação de ‘verdadeiro’ e ‘falso’ aos enunciados assertóricos (RUEDELL, 2000, p. 107). (itálicos nossos)

Este aspecto da correção assume papel importante quando se sabe “que não é a realidade que é contraditória, mas nossos discursos sobre ela” (STEIN, 1986). A verdade (e podemos dizer também a correção...) é uma “instituição intersubjetiva, — como o é a própria linguagem que a estabelece” (v. RUEDELL, 2000, p. 109). E qual então seria a função da verdade no ato de compreender? Como o próprio enunciado ou texto pretende ser compreendido, também a compreensão pretende ser veraz, posto que também ela toma a configuração de um enunciado, ou, melhor, de uma asserção. Se do lado do falante (e do que elabora o texto) há uma pretensão de verdade, devemos esperar esta pretensão também do ouvinte (e do leitor, do intérprete). Esta pretensão de parte a parte não se reduz a um posicionamento subjetivo ou arbitrário de um sujeito isolado: falar em pretensão de verdade pode equivaler a dizer que existem razões para asserir e/ou compreender da maneira x, que é possível justificar o enunciado ou a compreensão. Falante e ouvinte, cada qual está estribado em uma ‘teoria’ da verdade, e a compreensão só é possível se houver, no diálogo, mútuo oferecimento e análise de critérios que sejam adequados, suficientes, o que assim levará à sintonia entre a teoria de um e de outro, ou seja, compreensão. “A forma primária da compreensão é a compreensão humana, antes de tudo no diálogo: compreendo o que dizes; compreendemo-nos” (CORETH, 1973, p. 53).

Portanto, a questão da verdade colocada como pretensão de verdade dos enunciados, reside no nível dialógico dos interlocutores, levando o intérprete a elucidar a concepção de linguagem sempre presente no discurso ou texto a ser interpretado (GADAMER, 1999, p. 402―405). Kenneth J. GERGEN (1990), discutindo vários aspectos metodológicos da abordagem hermenêutica em psicologia, comenta este aspecto ‘relacional’ como fundamento para a emergência da compreensão e diz que não se procura meramente determinar a correspondência entre intenção e interpretação, mas que se deve ver a palavra como convite. Compreensão não se situa, não se encerra no leitor, interlocutor ou no parceiro de diálogo, mas é o que geram juntos na sua forma de ligação (idem, p. 47).

Outro elemento esclarecedor que considero ‘chave’ dentro do fazer hermenêutico reside na concepção hermenêutica (já anunciada acima e que agora detalhamos) de vivência (Erlebnis). Como afirma Gadamer,

A unidade de vivência (e não elementos psíquicos, sob os quais ela pode ser analisada) compõe a unidade real do dado. Dessa maneira, apresenta-se na teoria do conhecimento das ciências do espírito um conceito de vida que limita o modelo mecânico. Este conceito de vida é imaginado teleologicamente. Vida é, para Dilthey, produtividade, sem mais nem menos. Na medida em que a vida se objetiva em imagens dos sentidos, todo o entendimento de sentido é ‘uma retro-transposição das objetivações da vida na vivacidade espiritual, da qual são procedentes’. É assim que o conceito de vivência forma o fundamento epistemológico para todo o conhecimento do que seja objetivo. (...) Somente existem vivências na medida em que nelas algo se experimenta ou é intencionado. (...) O que se pode denominar vivência constitui-se na lembrança. Aludimos com isso ao conteúdo significante que, para quem teve a vivência, ficam como uma posse duradoura. É isso o que ainda legitima o discurso da vivência intencional e da estrutura teleológica que o consciente possui (GADAMER, 1999, P. 125-126).

Na medida em que o investigador procura hermeneuticamente acercar-se da vivência daquele que o convida, o interpela através do texto, com o seu depoimento, com sua fala, pode-se estabelecer as condições para que o diálogo efetivamente ocorra. Assim, juntos, conjuntamente, pode o pesquisador auferir o sentido intencionado pelo autor, intuir a correção do seu testemunho, compreender, ou seja, realizar a fusão de horizontes (GADAMER, 1999, p. 566).

RUEDELL (2000) identifica outro passo possível dentro do fazer hermenêutico, denominado interpretação gramatical de origem Scheleiermacheriana (SCHLEIERMACHER, 1999). O objeto de indagação é a linguagem, mas não enquanto um conceito universal, nem como um agregado de singularidades aplicadas e sim como natureza singular: é a obra da linguagem enquanto linguagem singularizada. O pressuposto é que em todos os níveis e tipos de discurso há o pressuposto de uma estrutura. Nela estão tanto sua condição de possibilidade quanto seus limites. A tarefa da interpretação gramatical é considerar cada ‘valor de linguagem’ não isoladamente, mas como elemento de uma estrutura ou de um sistema dentro do qual obtém seu significado. “Uma vez estabelecida a estrutura, nada mais é capaz de alterar o significado, nem uma explicação do sentido pelo autor, nem o preconceito do intérprete”, visto que “as idéias principais de um texto (...) não podem ser consideradas como produtos de uma criação de sentido extra―estrutural por parte do sujeito”, mas que, antes, “a gênese do pensamento e o processo de sua estruturação coincidem” (RUEDELL, 2000, p. 170―171). Vejamos:

Duas regras básicas ou cânones constituem o fundamento da interpretação gramatical. Numa, o discurso é visto em seu todo, enquanto determinação paradigmática: sendo necessário defini―lo melhor, deve―se fazê―lo a partir do ‘âmbito da linguagem comum ao autor e seu público originário’. A outra regra considera o discurso em suas relações lineares ou como determinação sintagmática: o sentido de um termo numa determinada passagem precisa ser definido segundo suas relações com os que o precedem e sucedem. Depois, submetida a esses cânones, já mais uma série de pares de oposição que, juntamente com os primeiros, instituem uma ‘diversidade de combinações e pontos de vista possíveis da interpretação gramatical’.

Os dois cânones têm em comum o princípio que ‘nenhum elemento isolado pode ser compreendido por si’, desvinculado de sua função ou lugar que ocupa no todo que integra. Por isso, ‘tudo [ainda] necessita de uma definição mais acurada, e a obtém na relação. Cada parte do discurso, tanto material quanto formal, é em si indeterminada’. Pensar num termo isoladamente é apenas pensar numa série de modos de uso. Exatamente da mesma maneira como acontece na ‘forma de linguagem’. Ambos os cânones realizam esse princípio, cada qual à sua maneira. O primeiro especifica, ao indicar que a definição de determinado discurso só poderia seguir do ‘âmbito da linguagem comum ao autor e seu publico originário’. (...) Enquanto isso, o segundo cânon exige que seu sentido seja definido conforme sua relação de coexistência com os demais termos da frase. (...) A prudência dessa formulação está baseada na própria diferença entre os dois cânones que, em verdade, é mais aparente do que real, conquanto os dois se complementam mutuamente: ‘um garante o significado idêntico do termo em todos os contextos’, o outro ‘a sua implicação sempre singular em contextos específicos’. Um pressupõe o outro. (RUEDELL, 2000, p. 172―173) (itálicos, aspas simples e colchetes transcritos conf. texto do autor).

RUEDELL (2000, p. 174) aconselha também aqui que se explique ‘arcaísmos’, ‘expressões técnicas’ que eventualmente surjam no texto. Tais expressões teriam razões de ser? Entre outros aspectos, podem ser equívocos ou erros do autor. “Todo elemento lingüístico deve ser analisado nas relações que o constituem”. Resumindo, “o princípio básico da interpretação gramatical é: um elemento singular só pode ser compreendido a partir do todo que integra, respectivamente, em suas relações paradigmáticas e sintagmáticas” (idem, p. 178).

Vimos como o conceito de círculo hermenêutico incorpora ‘metodologicamente’ o fazer hermenêutico na pesquisa. Aliás, concordando com CORETH (1973) ‘círculo’ não seria a figura mais adequada para ilustrar diagramaticamente o movimento hermenêutico, no sentido de uma circunferência que se fecha em si mesma. O que representaria melhor o acontecimento seria ‘um espiral, onde um elemento continua dialeticamente a se determinar e formar no outro. O todo do mundo da compreensão é enriquecido e aprofundado por toda compreensão novamente adquirida, e justamente por isso possibilita uma compreensão mais plena e mais profunda do conteúdo singular de sentido’ (p. 90).

Poderíamos elencar mais passos possíveis, detalhando possibilidades de aproximação com o ‘texto’. Mas acredito que esta amostra seja suficiente para ilustrar a propriedade da proposição desta abordagem em nosso campo de estudo. Em Psicologia ― isto no estrangeiro, pouco ou quase nada em solo pátrio ― existem vários bons exemplos da discussão e aplicação da abordagem hermenêutica, tanto no treinamento de futuros profissionais (p. ex. MICHRINA & RICHARDS, 1996) quanto no encaminhamento de casos, os mais diversos (p. ex. PACKER & ADDISON, 1989), e sob diferentes planos de intervenção.

Em síntese, identificamos em ROHDEN (2000, p. 170) o vislumbrar do ponto nevrálgico desta questão ‘metodológica’ da hermenêutica, quando aponta o modo de ser linguagem enquanto ‘método’ hermenêutico, na medida em que “(...) parece ser ‘objeto’ e ‘método’, ‘conteúdo’ e ‘forma’, concomitantemente, da hermenêutica, enquanto modo próprio de ser dessa” (negritos meus). Não se pode, segundo Rohden, tomar a compreensão ou a linguagem como fatos passíveis de serem investigados apenas como um ‘objeto empírico’, posto que ambas são irredutíveis a um simples objeto. “Não somente o objeto preferencial da compreensão, a tradição, é de natureza lingüística, a própria compreensão possui uma relação fundamental com o modo de ser linguagem, ou seja, a hermenêutica é, e se constitui lingüisticamente, e nisso difere do ‘método’ das ciências naturais” (Idem, p. 171).

Ainda que se possa observar ao longo da história questionamentos sobre a interpretação em geral e aspectos da atividade hermenêutica em particular (LANCEROS, 1997) modernamente o status da Hermenêutica está preservado, porquanto nela reside o lugar onde se constitui a verdade possível (parcial e episódica), dado que o homem e o mundo são, do ponto de vista das ciências da cultura/ciências do espírito, conjuntos significativos, formas simbólicas ou urdidura de sentido em que coincidem, inevitavelmente, pensamento, linguagem e interpretação. Assim, neste âmbito, nesta convergência homem―mundo, creio que se constitui, mediante a atividade hermenêutica, um espaço natural para auferir―se contribuições valiosas para a Psicologia.

Finalizando estas breves considerações sobre o fazer hermenêutico, cito uma colocação de Gadamer que, a nosso ver, denota o espírito que deve imbuir todo pesquisador: “A filosofia ‘hermenêutica’ se estende não como uma posição ‘absoluta’ mas como um caminho de experiência. No fundo, afirma que não há nenhum princípio superior ao de abrir―se ao diálogo. Mas isso implica sempre o possível direito de reconhecer de antemão a superioridade do interlocutor. Parece―nos pouco? Creio que é o único tipo de honestidade que se poderia e deveria exigir a um professor de filosofia...” (GADAMER, 2002, p. 576). Acredito que esta, a honestidade, aliado ao rigor, deva ser a postura de todo investigador―intérprete, e nesta perspectiva adotei este ‘proceder’ hermenêutico, com a esperança e certeza do ampliar da compreensão.


Percorremos neste Capítulo a discussão que introduz a Hermenêutica como ‘metodologia’ para a pesquisa em Psicologia, sob a ótica do filósofo alemão Hans-Georg Gadamer. Discuti o lugar da linguagem como meio de acesso à experiência humana e a solução hermenêutica para a compreensão da vivência, este um conceito fundamental para a verdade da compreensão.

Veremos em seguida no próximo Capítulo algumas idéias que nos aproximam ao entendimento do que constitua a natureza do processo de conversão religiosa. Irei fixar o conceito em torno de uma descrição contemporânea do fenômeno.

Introdução da minha Tese de Doutorado

Resolvi, a pedidos, colocar minha Tese aqui no meu Blog. De que adianta mante-la 'escondida', não é mesmo? Na verdade, tal conhecimento não me pertence e, depois que superei todas as dificuldades, parece que "não preciso provar mais nada pra ninguém"... 


 

INTRODUÇÃO


...nosso conhecimento do mundo apresenta-se como um texto infinito, que aprendemos a recitar com dificuldades e fragmentariamente.      H-G GADAMER, V&M II, p. 242.


         Acredito que se pode compreender, em grande medida, o que constitui o ser de uma pessoa observando os seus momentos ‘marcantes’. Se me fosse perguntado o que acredito ser marcante em minha vida, diria que foi, de um lado, a atmosfera religiosa sempre presente em minha família e, de outro, o estímulo parental para o auto-desenvolvimento, notadamente o intelectual. Assim, a coleção destas vivências determinaram como vejo, no plano pessoal, a propositura do tema a ser trabalhado. De um lado, meu percurso religioso e, de outro, o projeto intelectual que me propus percorrer, corporificado no meu treinamento acadêmico formal, e desembocando na escolha da atual carreira profissional como docente de ensino superior e psicoterapeuta.

         Minha formação religiosa foi oriunda da tradição Católica apostólica romana, com pais atuantes, conscientizados. Não obstante, na idade adulta experimentei em 1984 uma conversão à Igreja de Jesus Cristo dos Santos dos Últimos Dias, (movimento conhecido como Mormonismo), em Campo Grande, capital do Mato Grosso do Sul. Posteriormente, de volta a Rio Claro, onde resido, experimentei uma conversão ao Zen Budismo, na escola Soto em 1995, tendo realizado a cerimônia de votos leigos no templo Bushingi Zen Sotoshu, em São Paulo, no bairro da Liberdade, sob a orientação do Abade à época, Reverendo Moryiama Roshi.

         Profissionalmente, sempre almejei a docência, realizando diversos estudos pós-graduados (lato sensu) após a formação em Psicologia, pela PUC-Campinas, em 1977. Estas atividades foram posteriormente completadas na elaboração da dissertação de Mestrado, tendo como tema a análise do problema da relação Mente-Corpo, envolvendo a crítica de Gilbert Ryle ao dualismo cartesiano. A abordagem empregada neste estudo foi a da Análise da Linguagem, campo de especial predileção.

         Ampliando meu interesse nas relações entre corpo e mente, decidi averiguar, nos estudos no programa de Doutorado, determinados aspectos da experiência mental (marcadamente lingüística) intimamente associada com alterações corpóreas, como no caso da mudança cognitiva significativa no contexto da vivência religiosa. Dentre a miríade de assuntos possíveis, elegi como objeto de estudo o processo da conversão religiosa.

         Pensando no aspecto social da propositura desta investigação, justificamo-la inicialmente pelo fato de que ‘o Homem é, desde o começo, um ser de necessidades’ (CATALAN, 1999, p. 65) e que, das suas carências, a dimensão da religiosidade ocupa espaço primordial. O homem é um ser incompleto, e nada parece satisfazer totalmente o homem neste mundo; chega-se a afirmar que “O homem é um ser insatisfeito” (CALLIOLI, 2001). Este autor diz que mesmo quando se atinge determinado objetivo parece faltar algo; após um momento de gozo, acaba-se por sentir uma “pontada de frustração”. Desde o descortinar da humanidade, o existir condiciona, a todos, a convivência com desafios e obstáculos que, pelo seu grande número, mais impregna nos viventes a posse de sentimentos ditos ‘negativos’ do que o contrário (SQUEFF, 2001). Mesmo antigamente o antes príncipe Sidartha Gautama, agora Iluminado, identificou, em sua prática, que o apego às coisas do mundo determina a tristeza, infelicidade ao ser humano. O homem despende grande parte de sua atividade buscando minorar a influência e coexistência com o mal e acercar-se do que considera um bem, de modo a ser feliz. Assim, a felicidade parece constituir a meta fundamental do ser humano. Todas as pessoas, em algum momento de suas vidas, questionam sobre o melhor caminho para adquirir e manter este estado ou condição, que se espraia, tanto no plano material, quanto no que tange às vivências privadas, denominado por muitos (ainda que os termos não sejam sinônimos) como a ‘vida espiritual’.  MORRA (1998, p. 40) afirma, sob Dilthey que, historicamente, a “religião (...) é uma ‘concepção do mundo’, ou seja, um conjunto coerente de sentimentos e idéias sobre o sentido e o valor da vida”.

         Dentre as várias alternativas possíveis para alcançar a felicidade, o caminho de indagar pelo transcendente, complementando ou não a experiência humana do numinoso, é a senda escolhida pela maioria, em todas as épocas e culturas. Com a evolução da humanidade, em especial na tradição ocidental, estes caminhos acabam muitas vezes sendo identificados ou assimilados com a religiosidade. O senso religioso parece ser intrínseco à condição do Homem no mundo, como uma natural destinação, o que pode ser corroborado pelos estudos antropológicos e históricos, em nível mundial, nas várias dimensões das experiências humanas, multifacetadas e heterogêneas (SCHNITMAN, 1989), e suas relações. Em especial nas artes, o vasto e multidimensional produto cultural de uma coletividade, a idéia da espiritualidade é recorrente. Por exemplo, VASCONCELOS (1999) comentando dois documentários brasileiros [1] sobre religião (‘Fé’ e ‘Santo Forte’) em cartaz à época, expressa que

A religião talvez seja a coisa mais importante que existe na sociedade. Religião vem de ‘religare’, aquilo que liga a comunidade, a tribo, o país. O cimento espiritual da cultura é a religião, de modo que pode ser tanto o ópio do povo quanto a vitamina para fraco. Depende de como funciona a fé em uma determinada sociedade. No caso do Brasil, os melhores cientistas e artistas são pessoas que se dedicam a refletir sobre a particularidade do nosso sentimento religioso (p. 4-14).

         As organizações sociais, a grande expressão moderna da sociabilização do homem (em especial as corporações que visam lucro), também se valem de considerações sobre religiosidade, tanto para decisões de negócios e gerenciamento de empresas (COHEN, 1998, 2002) como para questionar a relação mais ampla entre vida religiosa e prosperidade (BARRO, 2001; SANTOS, 2001). A vida profissional do trabalhador também pode ser fortalecida com a religiosidade (SILVA, 1999; BARELLI, 2001). Em especial pela importância da informática nos dias de hoje, as revistas e jornais empresariais abrem espaço para considerações assemelhadas (ESCOBARI, 2001; GILDER, 2000). Até o quesito Fé está na internet, com as igrejas ampliando “serviços interativos para consolidar seu rebanho cibernético” (PEREIRA, 2003). (Observe-se que a enorme profusão do assunto religião na mídia de grande circulação – notadamente revistas e jornais - reflete a importância do tema nas cogitações contemporâneas do cidadão comum).

         Inegavelmente, o último evento mundial que reforçou a importância da reflexão sobre a religiosidade nas micro e macro relações humanas foi o atentado terrorista nos Estados Unidos em 11 de setembro de 2001. A princípio designada como um estúpido ato político praticado por um grupo suicida (MERARI, 2001), rapidamente assumiu, para uma parcela da opinião pública, contornos de ‘guerra religiosa’ entre ocidente cristão e oriente muçulmano (CARVALHO, 2001). Os muçulmanos são divisados como pertencentes a uma religião com contornos ‘fanáticos’, onde os convertidos não titubeiam em imolar-se pela causa de Alá.  Ao que parece esta aproximação foi facilitada pela ainda recente lembrança do conflito nos Bálcãs, considerado mormente também como de fundo religioso (SONTAG, 1999), onde muçulmanos e cristãos foram envolvidos. Em 23 de setembro de 2001 o jornal Folha de São Paulo publica o caderno especial ‘Todos os mundos do Islã’, com doze páginas de reflexões intentando contribuir com a discussão sobre as relações entre as grandes religiões, em geral, e sobre o islamismo e sua vertente fundamentalista, em particular. O debate sobre este tema foi estimulado no mundo todo por um sem- número de congressos, seminários e por copiosa contribuição dos mais variados estudiosos, publicados principalmente nos meios de comunicação de massa (DAMATTA, 2001; LLOSA, 2001; SULLIVAN, 2001; JOHNSON, 2001; PINTO & MUNCINI, 2002; SARAMAGO, 2001; TOFFLER & TOFFLER, 2001, 2002; RUSHDIE, 2001, v. também 2002; ECO, 2001a, 2001b; HABERMAS, 2002, 2003). Um interessante resultado (que poderá influenciar a discussão da relação entre política e religião) foi que, após décadas de certo silêncio, os americanos retomam a discussão de princípios religiosos e morais como questões de Estado (LEE, 2002).

         No Brasil, pela própria origem, inclusive, o fenômeno religioso sempre esteve presente no considerar e fazer humanos. Um dos modos que se pode dimensionar atualmente esta prevalência é pelo espaço a ele destinado na mídia em geral, especialmente a impressa. Recentemente, a julgar pelas reportagens, o brasileiro tem se posicionado muito mais sobre religião (ver p. ex., ARRUDA, 2000, 2002; SOUSA, 2001).  Já para EDWARD (2002), muita desta constatação se deve ao crescimento, em décadas recentes, da fé evangélica (em oposição à fé até então marcadamente católica), determinando mudanças na ‘paisagem’ do Brasil neste âmbito: alterações extensas no tecido social que vai dos “esportes à política, das favelas aos bairros chiques, dos presídios à televisão” (p. 89). Algumas reportagens identificam até um certo caráter mercantilista que parece ter dominado a enorme expansão de ‘religiões’ que se verifica atualmente (SHEA, 2001; RIBEIRO, 2001). O jornal diário Folha de São Paulo destinou um caderno especial (ANO 2000 – BUSCA PELA FÉ, 1999) para ilustrar os grandes temas subjacentes às grandes correntes de pensamento, religiões e seitas na contemporaneidade e seus reflexos no Brasil.  VEJA, a maior revista semanal de variedades da América do Sul, tem sistematicamente dedicado espaço a temas religiosos. O número que saiu no dia de Natal de 2002 dedicou ampla matéria (27 paginas de texto, de um total de 134 de texto e publicidade) ao maior ícone do cristianismo nacional, a figura de Jesus (BOSCOV, 2002). O brasileiro, principalmente pelos desafios e condicionantes histórico-político e econômico, parece estar buscando na religiosidade muitas respostas para a sua condição. Pelas dificuldades a que está submetido, indaga pelo auxílio da divindade para encontrar um modo de ser feliz, posto que a razão muitas vezes não propicia o encontro das respostas adequadas (ANGELI, 2002, p. 130).  A Academia acompanha questionamentos neste sentido, havendo enorme fluxo de publicações sobre a temática, de elevada qualidade (CAPRA, STEINDL-RAST & MATUS, 1991; DERRIDA & VATTIMO 2000).

         Um exemplo recente desta abertura do brasileiro para com a temática religiosa (ou pelo menos do fascínio pelo misterioso) manifestou-se com o fenômeno da ‘santa da janela’. Em diversas residências da Grande São Paulo surgiram imagens de Nossa Senhora ou manchas, conforme a fé do observador, após a notícia do surgimento de uma ‘aparição’ na vidraça de uma residência em Ferraz de Vasconcelos (GARBIN, 2002). Mais de 190 mil pessoas visitaram esta residência em um espaço de 15 dias (MUG, 2002). Mesmo após uma comissão científica altamente especialista ter divulgado laudo pericial demonstrando que a imagem se devia a uma espécie de ataque químico do vidro tipo soda-cal-sílica (ZANOTTO, 2002, p. 14) resultando visível, pelo reflexo iridescente, em figuras geométricas arredondadas (e mesmo também o fato ter sido explicado ao povo pelo pároco da igreja católica local como um fenômeno natural), os fiéis devotos continuaram com a peregrinação ao local por um bom tempo. Atualmente, ao que parece, não se noticia mais nos jornais esta ocorrência.

         Dentre o universo das expressões da religiosidade, pela sua dimensão popular, é bastante encontradiço no Brasil o messianismo e o milenarismo, fenômenos por vezes imbricados ou até fundidos (NEGRÃO, 2001). Destas expressões, as mais conhecidas foram os de “O Reino Encantado”, transcorrido de 1836 a 1838 em Pernambuco, com sacrifício humano e morte violenta dos adeptos; o do “Povo do Velho Pedro”, na década de 40 no interior da Bahia; a “Guerra Santa” do Contestado, de 1912 a 1916 em Santa Catarina, e o movimento de Canudos na Bahia, de 1893 a 1897. Mais recentemente surgiram os movimentos do “Demônio no Catulé”, dos Adventistas da Promessa, ocorrido num grotão de Minas Gerais; o do “Exército da Salvação”, organizado por Aparecido Galdino, o “Aparecidão” na década de 60 no interior paulista; a “Fraternidade Eclética Espiritualista Universal”, conduzida por Yokaanam no Rio de Janeiro em fins da década de 40; o movimento ufologista/terrorista de Aladino Félix, de São Paulo (década de 60), e o movimento denominado “Borboletas Azuis”, de Campina Grande na Paraíba, liderado por Roldão Mangueira e bastante noticiado na década de 70.

         Pelos poucos aspectos evidenciados anteriormente pode-se aquilatar a ampla importância que o assunto religiosidade assume no entendimento das vivências humanas e suas polissêmicas expressões. No caso do Brasil este interesse tem sido evidenciado pela presença da temática em inúmeros espaços da vida em comum, em quase todas as dimensões sociais, sendo muitas vezes opção preferencial para a corporificação do existenciar das pessoas (existenciar no sentido que utiliza FIORI, 1967, 1978, p. 10, 15, como sendo o modo de ser do Homem: pela palavra — que significa palavra e ação — intersubjetivada). No âmbito acadêmico, cremos que a pesquisa sobre a expressão psicológica da religiosidade pode fornecer elementos importantes para várias áreas do conhecimento e, pela sua abrangência multifuncional, pode contribuir efetivamente para esclarecer a formação e a manutenção do que constitua precisamente a dimensão religiosa da brasilidade.

         Sob o aspecto científico, justifico a propositura desta Tese no sentido que a Academia tem sido mais e mais interpelada a se pronunciar sobre a vital temática da religiosidade. Após muitos anos da separação demarcada entre os domínios científico-acadêmico e religioso, observo — principalmente nas décadas recentes — (certamente um sinal de maturidade e humildade intelectual dos interlocutores de parte a parte) um decidido movimento de aproximação das respectivas agendas. Entre tantos estudiosos e enfoques, este fato foi refletido por MORAIS (1975) que identificou a educação como o elo de ligação entre estes dois campos. Mais recentemente tivemos publicado entre nós dois exemplos desta iniciativa de diálogo, ainda que oriundos de tradições diversas e com objetivos distintos. Um, ‘Em que crêem os que não crêem?’ (ECO & MARTINI, 1999; v. também a resenha de GRECO, 2000), resultado da aproximação promovida pela revista italiana Liberal, onde os autores trocaram correspondência durante um ano visando encontrar pontos comuns entre o mundo laico e o mundo cristão. Nesta obra averiguo que, apesar de o mistério e a evidência serem ambos e mutuamente de acesso difícil, o diálogo tem que existir. A outra obra é ‘Pilares do tempo’ (GOULD, 2002; ver também a resenha de LOPES, 2002). Nesta obra, o autor defende a dialogicidade entre o que ele denomina MNI (Magistérios Não-Interferentes), representados pelos campos da Ciência e da Religião, como indispensável para a plenitude e a sabedoria do caminhar humano.

         Sob o manto do diálogo necessário que deve presidir as relações entre Ciência e Religião, além da educação, como apontei, mas em outra direção, considero também que a Psicologia se constitui como interlocutor natural entre estes domínios. Ela dispõe efetivamente de ferramental intelectual e de instrumentos específicos para favorecer esta aproximação (VERGOTE, 2001; SPILKA et al, 1996; BLANCO-BELEDO, 1998), inclusive no plano clínico e da saúde mental (SHAFRANSKE, Introduction, 1996, p. 2 e 3). Existe efetivamente uma necessidade em legitimar a “linguagem religiosa em face da Psicologia” (AMATUZZI, 2003, p. 62). Mas esta mediação da Psicologia não se processou de modo plenamente consensual, ainda que guarde enorme potencial de contribuição (ANCONA-LOPEZ, 2001; 2002).

         Conforme WULFF (1996, p. 45), desde seus primórdios a atividade da Psicologia da Religião tem sido marcada pela atuação em dois campos principais, um descritivo e outro explanatório. O descritivo preocupa-se em documentar as variedades e os tipos de experiência religiosa, com a idade ou o estágio da vida comumentemente servindo como variável significante. O explanatório visa investigar a origem das experiências e práticas religiosas não no campo do transcendental, mas no espaço mundano dos eventos ambientais, biológicos e psicológicos. Com estas agendas radicalmente divergentes, os psicólogos da religião (atentos a diferentes aspectos do fenômeno religioso) concebem a religião em termos bastante contrastantes. Por um lado, o que parece existir é um fenômeno amplo, complexo, que se reflete na dificuldade na sua abordagem e, conseqüentemente, na sua adequada conceituação. Por outro lado, o próprio entendimento do que seja Psicologia, não bastasse já toda a sua pluralidade e multidimensionalidade (“Na verdade, não existe uma psicologia, mas psicologias” – CATALAN, 1999 p. 9), obteve nos últimos decênios uma sensível alteração (PAIVA, 1999, p. 11).

         No nível mundial, a Psicologia da Religião teve origem independente na Europa e nos Estados Unidos (PAIVA, 1999, p. 10), estagnando-se no período das Grandes Guerras. Atualmente constitui área de investigação bastante atuante, discutindo diversos e polifacetados temas. No Brasil, o interesse geral dos profissionais psicólogos na Psicologia da Religião é pequeno, em comparação com os demais sub-campos, apesar de se espraiar em diversos aspectos da religiosidade. Em particular, por exemplo, os estudos mais recentes sobre um dos seus fenômenos mais visíveis, a conversão religiosa, referem-se em grande parte à adesão de brasileiros às novas religiões ou a religiões orientais (ver p. ex. o n. 2, do ano 2002, da revista REVER – http//www.pucsp.br/rever; PAIVA, 1996, 1999a). De minha parte, concordo com HEFNER (1997, p. 157) quando afirma que ‘a Psicologia está no coração da interface entre religião e ciência’.

         Não obstante existirem estudos sobre o senso religioso em geral e a conversão religiosa em particular, em diferentes tradições e escolas de pensamento, elas refletem as dificuldades apontadas acima, ainda que, por muito tempo, a conversão tenha fascinado teólogos, sociólogos e psicólogos (PARGAMENT, 1996, p. 227). Por outro lado, ainda que constitua campo controverso e complexo, concordo com BARNHART & BARNHART (1981, Introduction, p. 01) de que se pode estudar objetivamente a religião requerendo, entre outros aspectos, que se tenha uma mente aberta, receptiva. Adicionalmente desconhece-se, em nosso meio, estudos sistemáticos em domínios importantes como p. ex., sobre a conversão religiosa no âmbito de instituições religiosas milenaristas, tal como A Igreja de Jesus Cristo dos Santos dos Últimos Dias (Igreja Mórmon). É muito escassa a literatura sobre a Psicologia da conversão religiosa nesta organização visto que, entre outros aspectos, o acesso ao material eclesiástico é dificultado a pesquisadores em geral.

         No tocante aos objetivos desta inquirição pretendi, em primeiro lugar, realizar a descoberta da própria Hermenêutica, enquanto aplicada à análise da conversão religiosa. Eu tinha um conhecimento quase que superficial desta importante área de investigação, antes de iniciar meu Doutorado. Em segundo lugar, esta pesquisa visou aumentar os horizontes de compreensão da natureza do processo psicológico da conversão, realizado mediante o estudo hermenêutico de um depoimento concreto, uma narrativa escrita. Trabalhar com narrativas exibe elevado potencial de análise para as ciências humanas em geral e para a Psicologia em particular, visto que “... envolve o estudo de como o homem vivencia e significa o próprio mundo, a própria vida” (VIEIRA, 2001) e abrem “novas possibilidades de interpretações” (SILVA, 2002). Para auxiliar no entendimento e aplicação da análise hermenêutica, realizei também a análise do depoimento de Paulo Setúbal segundo os estágios de conversão de RAMBO (1993), objetivando cotejar as abordagens de análise. Assim, neste segundo objetivo de trabalho, averigüei imbricamentos e também pontos de convergência e divergência nos dois tipos de compreensões obtidas da conversão de Paulo Setúbal: (a) analisada hermeneuticamente, e (b) analisado a partir do modelo explanado em RAMBO (1993). Por fim, como terceiro objetivo, visei aumentar os horizontes de compreensão da  aplicação da abordagem hermenêutica à psicologia da conversão religiosa.

         Sobre o depoimento estudado, realizei o estudo hermenêutico de uma narrativa de conversão extraída de um clássico da literatura brasileira, o livro Confiteor (do latim, ‘eu confesso’ - SETÚBAL, 1938), escrito pelo ensaísta e contista Paulo Setúbal, membro das Academias Paulista e Brasileira de Letras, uma pessoa pertencente à tradição Católica Apostólica Romana. Este texto revela com riqueza de detalhes descrições de experiências de conversão religiosa (Ver o ANEXO, com a numeração das linhas do depoimento).

Quanto aos procedimentos, executei leitura minuciosa da narrativa, diversas vezes. O depoimento elegido para estudo efetivamente possui manifesta densidade experiencial. Foi elaborada a unidade de sentido da vivência (um contexto de sentido - Sinnzusammenhang), a partir da abordagem hermenêutica, mediante a aplicação do círculo hermenêutico. Entre outras atividades inerentes desta postura qualitativa-intepretativa identificam-se, p. ex. os elementos experienciais presentes no depoimento, explicitam-se as condições de preparação das vivências e sua articulação, evidenciam-se os desdobramentos identificados no depoimento. Como decorrência, obtive a ampliação do horizonte de compreensão, a partir da situação hermenêutica e da conjunção hermenêutica das análises procedidas.

         Acredito que esta investigação, discutindo a lingüisticidade e o caráter discursivo inerente ao processo de conversão religiosa, traz para o conhecimento científico nesta área uma nova abordagem de análise, constituindo especial interesse para a Psicologia da conversão (AMATUZZI, 2003, p. 70; v. também ALMEIDA, 2001).

         A tese está dividida em quatro Capítulos. No primeiro, é apresentada a abordagem da Hermenêutica sob o enfoque do filósofo alemão Hans-Georg Gadamer, nascido em 1900 e falecido no ano passado. Esta aproximação consiste basicamente na execução do círculo hermenêutico, onde as partes de um texto são analisadas com relação à totalidade que as determina. Este primeiro capítulo possui 5 seções. Na primeira, trago ao debate certos aspectos concernentes ao que compõe a natureza humana. Na segunda seção, discuto uma característica humana fundamental, a linguagem, que se constitui como via de acesso primordial à experiência. Na terceira seção, apresento algumas escolas que pretendem alcançar o fenômeno da linguagem, antecedendo a quarta seção, onde descrevo a solução hermenêutica para a compreensão da vivência, expressa na linguagem. Na quinta seção discuto os procedimentos pertencentes à abordagem hermenêutica, na visão de Hans-Georg Gadamer.

No segundo capítulo, temos a fixação do conceito do fenômeno da conversão religiosa, através de cinco seções. Na primeira, temos algumas generalidades sobre o tema da conversão, além do essencial sobre este tema a partir do livro precursor do psicólogo William James As variedades da experiência religiosa (uma das principais referências sobre a experiência religiosa no campo da Psicologia). Na segunda seção, apresento outras idéias a partir de alguns estudos contemporâneos sobre a temática. Na terceira seção, inicio a discussão da natureza do fenômeno da conversão, apresentando em seguida, na quarta e quinta seções, o Modelo de Conversão religiosa por Estágios, do psicólogo americano Lewis Ray Rambo.

No terceiro capítulo é realizada a análise hermenêutica de um depoimento publicado postumamente, o relato da conversão do escritor supracitado. Este capítulo está dividido em 3 seções. Na primeira, introduzo a discussão percorrendo a cronologia básica do texto originário, com a sua ‘linha-mestra’. Em seguida, apresento a análise hermenêutica realizada do depoimento, extraindo a unidade do sentido da vivência de Paulo Setúbal em sua conversão (também denominado, como disse, o contexto de sentido – Sinnzusammenhang). Na última seção, explano sobre a minha vivência ao trabalhar hermeneuticamente com o magistral texto.

No quarto capítulo realizamos a análise e discussão dos resultados, intentando realizar os objetivos da tese – basicamente aumentar os horizontes de compreensão da aplicabilidade da abordagem hermenêutica na análise psicológica de depoimentos de conversão. Esta parte está estruturada em quatro seções; na primeira, faço um resumo de minhas observações e reflexões sobre a compreensão (auferidas em minha pesquisas sobre hermenêutica e na análise do texto de Paulo Setúbal), ressaltando sua importância dentro do fazer hermenêutico sob Gadamer. Na segunda seção, a partir do mesmo relato do processo de conversão religiosa do autor citado, encontrado em seu livro Confiteor, realizo a análise sob o modelo de estágios de conversão religiosa de Lewis R. Rambo.

Na terceira seção, analiso e discuto os imbricamentos e convergências das interpretações realizadas (hermenêutica e descritiva-empiricista de cunho desenvolvimentista), tecendo observações sobre o processo de conversão de Paulo Setúbal e sobre o processo de conversão em si. Afirmo ali, à luz das reflexões de Gadamer, que a vivência e a Personalidade exercem papel importante na compreensão do fenômeno da conversão, aspectos não muito encontradiços em muitas teorizações sobre a mesma. Na última seção, apresento algumas intelecções de nossa investigação para a práxis hermenêutica na Psicologia da conversão religiosa.

[1] Ver também o comentário de Marcelo Coelho (Folha de São Paulo, Cad. Ilustrada de 18 abril 2001, p. E 8)  sobre o documentário “O Chamado de Deus”, do diretor  José Joffily.

Início das aulas 2010

Mais um ano escolar se inicia... Período de reflexões, rearranjos, reflexões, providências, reflexões, ajustes, reflexões, epa, estou me repetindo! Mas o fato é que é recorrente a comparação com os outros anos., e a meditação que sou levado a perpetrar. Sou daqueles que questiona de modo perene a nossa atividade.  Ao que parece, neste 2010, as classes que são 'novas' para mim (I semestre de Psicologia e III Semestre de Ciências Contábeis) são muito boas. Apesar da 'qualidade' do alunado de terceiro grau piorar a cada ano, ocasionalmente somos surpreendidos com classes motivadas, amadurecidas e dispostas a experienciar a mágica do ensino. 

Como aluno (alguns estranham eu ainda 'continuar estudando'...; ora, tem hora para isso acabar? Já penso o que vou fazer quando terminarem estes estudos de Teologia Reformada...Possivelmente vou continuar na mesma temática, ou Psicologia da Religião mesmo, mas dentro de um programa de pós-Doutorado) estou terminando neste mês o primeiro curso do Mackenzie, no CPAJ - Centro de Pós-Graduação Andrew Jumper, denominado Pós-Graduação (Lato Sensu) em Estudos Teológicos. O próximo também vai demorar um ano e meio, e se denomina Pós-Graduação (Lato Sensu) em Estudos Bíblicos (e tem o primeiro como pré-requsito). São cursos importantes para um cristão, e como desconhecemos a Deus...

Que calor neste verão, e quanta chuva! Dizem que é resultado do fenômeno El Niño, mas creio que também as mudanças climáticas já se fazem notar. Eu detesto o calor e, apesar de ter ido à praia neste ano, nao tomei sol um segundo sequer, nem entrei no mar, por razões de saúde pública. Ainda assim peguei, como se diz, uma cor, só 'no bafo', visto que não arredei o pé do guarda-sol. Minha esposa que, ao que tudo indica, tem um pezinho na senzala, ficou mulata, um arrazo! Mas não consigo ficar 'cozinhando' embaixo do astro-rei como ela perpetra..