A V I S O


I am a Freemason and a member of both the regular, recognized ARLS Presidente Roosevelt 75 (São João da Boa Vista, SP) and the GLESP Grande Loja do Estado de São Paulo, Brazil. However, unless otherwise attributed, the opinions expressed in this blog are my own, or of others expressing theirs by posting comments. I do not in any way represent the official positions of my lodge or Grand Lodge, any associated organization of which I may or may not be a member, or the fraternity of Freemasonry as a whole.

domingo, 1 de março de 2009

Receita de um café especial.

Tenho um costume já estabelecido em meu casamento – fazer o café matinal de Ruth. Não entendam mal – não é obrigação, e sim ato de amor, que se estabeleceu sem que palavras fossem necessárias. Ela me brinda com tantas coisas que até que faço pouco por ela (concedo sempre às representantes do belo sexo: a mulher vive muito bem sem o homem; este sem a mulher não vive), mas não é de ‘trocas’ que falo aqui, é cortesia, ações-de-quem-gosta, concretudes, ausência de só-discurso. Pego o café em grão, premium, de Minas, duas precisas porções de uma medida já padronizada – uma ‘colher’ de plástico em forma de ‘v- e pulverizo-o num moedor só a isso destinado. Enquanto isso, escaldo a canequinha de porcelana que ela aprecia (deixando dentro da mesma uma colherinha de prata que servirá para mexer o açúcar). Se eu não fizer a bebida na nossa máquina doméstica de café expresso, coloco então a água filtrada (proveniente do pote de barro que a mantém suavemente oxigenada e descansada) no compartimento inferior do bule de café, bule este específico para café rápido aquele tripartido que faz a água ebulir rapidamente da parte inferior para o depósito superior, passando por um filtro, também de alumínio, onde repousa o pó, já previamente ali depositado. Antes de se colocar o equipamento ao fogo brando, estas 3 partes do bule são firmemente rosqueadas entre si pela porção medial, conferindo certa segurança na operação. Ao escutar-se a água esgotar, apaga-se o fogo, retira-se a água quente da canequinha, coloca-se o ebúrneo açúcar cristal na medida certa e deposita-se gentilmente o precioso néctar até o segundo terço. Serve-se em salva de prata com um toalhete de papel sedoso, adornado com um beijo, sem precisar perguntar se ficou gostoso, pois sempre se sabe a resposta. (P.S. - não tomo mais café - nem vinho, que eu gostava, por problemas de saúde. Um dia comento...)

terça-feira, 17 de fevereiro de 2009

Egoísmo e Fineza

             Nesta semana pude ver novamente como é difícil a convivência interpessoal em geral (e entre pessoas que já foram cônjuges anteriormente; como ouvi certa vez,  “uma ex-mulher é para sempre”...). Sim, no meu caso, vi novamente que, mesmo que me esforce para ser ético, elegante, cuidadoso, cortês; mesmo que confesse meu arrependimento e me desculpe, a ex-esposa pode relembrar rude, traiçoeira e  de modo boçal que ela ainda nos carrega como pesada mágoa encarnada, depois de tanto tempo, envenenando-se inutilmente. Chega a dar pena e nos suscita ao pensamento desonroso que somos, pelo menos ali, melhores que ela (o que realmente não significa muita coisa).  Que viés (por vezes) pernicioso este meu de ‘psicologizar’ os acontecimentos, mas é quase inevitável.  Porquê certas coisas tem o condão de fragilizar tanto determinadas pessoas? Por mim, digo que considero  um auto-treinamento meu ‘insistir’ que as coisas são menores do que eu, e que não é justo deixá-las nos derrubar.  Quando vejo isto nos outros constato como todos temos cruzes a carregar que podem ser, paradoxalmente, um palitinho para os outros. Lembro-me de uma crônica (se assim posso nomear) de Danuza Leão, publicada na Folha de São Paulo em 25 de setembro de 2005 (‘Considerações sobre o egoísmo’, baixar em http://www1.folha.uol. com.br/ fsp/cotidian/ff2509200505.htm) no caderno Ilustrada. Ela dizia que os egoístas não amam os demais mas, antes, não amam a si mesmos. Podem ser até boas pessoas, mas tem uma falha essencial, aquele ‘desconfiômetro’ que minha mãe sempre me lembrava quando era criança.  A grande indagação da articulista é se este tipo de pessoa pode mudar, e como. O bom senso diz que sim, mas o processo é que são elas.  Novamente, neste caso, vejo que (para mim) funciona aquela reflexão sobre o desenvolvimento das virtudes. Os antigos (notadamente Aristóteles) ensinavam que o modo de ‘evoluir-se’ para melhor como ser humano era cultivando as virtudes. Mas o que é uma virtude? Como vimos, sabe-se que, grosso modo, constitui num padrão de comportamento e sentimento: uma inclinação sistemática e consistente para agir de certa maneira e desejar e sentir certas coisas em determinadas situações. Sabemos por experiência própria que possuir emoções apropriadas é essencial para o que nomeamos ‘a arte do bem viver’, consistindo virtude (em grande parte) na posse e uso de raciocínios apropriados sobre as condutas condizentes/adequadas que devemos executar na situação em que nos encontramos, eventos que se nos são dados.  É qualidade por demais complexa, que custamos a nos conscientizar. Mais uma lição a relembrar.

sábado, 7 de fevereiro de 2009

Ahh.. a complexidade moderna...

Ontem estava confabulando com meu querido amigo Gilberto, à saída do Centro Universitário onde somos docentes. Moço novo, confessava sua tristeza com certo rapaz, um tanto escasso em calor humano, por assim dizer. Disse-lhe que um dia este rapaz também teria filhos e aí veria como é importante certa fineza no trato interpessoal.  Eu, que já sou avô (hmm... parece se tratar de outra pessoa - é como doença ruim, só ocorre com o vizinho) aprendi a dominar um pouco meus sentimentos; a gente pensa muito errado, habitualmente. O velho problema é a mágoa que se nos apodera. é um veneno que custa a esvanecer (falo com experiência própria, e não foi uma só vez...). Mormente é uma equação que nunca fecha, e nos debilitamos. Que duro aprendizado e, paradoxalmente, para muitos o tempo a passar não ajuda a minorar, antes, piora a afecção da alma...
Porisso que muitos não acreditam em coisas que não detenham - em si ou em virtude de sua processualidade - certo 'poder mágico'  para nos fazer melhorar ou fazer desaparecer aquilo que cremos ser a razão de nosso infortúnio, que seja coisa ou pessoa. Mas o que poucos sabem é que o mal, como Epiteto ensinava, não são as coisas em si, mas sim o que o homem pensa sobre a coisa (veja o exemplo da garrafa meio cheia ou meio vazia...) - é uma questão de ponto de vista.  Sim, falar é fácil, por isso que muitos pensam que psicoterapia não é coisa séria, mas é um raciocínio dos mais pavorosos em seu reducionismo. Volto ao assunto. Agora tenho que ir na casa do amigo Julio - alguém vai lá levar uma picanha...  (não, não ligo tanto para a carne, como muito pouco isso, gosto mais muito mais dos amigos...)

terça-feira, 20 de janeiro de 2009

Coincidências…

 Vi no caderno ‘Mais!’ (#876) da Folha de São Paulo (ano 88 #29.145) à p. 5 uma pequena análise de Eduardo Sterzi sobre a obra de Steiner, complementando a matéria principal. O que salta aos olhos é a recorrente confirmação, a partir de diferentes autores/contextos, do fato de que compreender precisa e inexoravelmente envolve, como apontou claramente Hans-Georg Gadamer (Verdade e Método I e II), interpretação. Pode parecer a desavisados certa minudência de acadêmico enfastioso, mas disto decorre que sempre trazemos nossos horizontes prévios (de compreensão) que pré-conduzem nosso entendimento. Este acontecimento tem grande impacto no âmbito da comunicação humana em geral (e na educação em particular), posto que não se considera, de plano, por parte da pessoa (e, por vezes, dos docentes,) este fundamental aspecto na assimilação de novos dados, conceitos, informações, et cetera. Assim, creiam, no linguajar, na lingüisticidade gadameriana, também sobre a dialogicidade do humano bem como no exame das narrativas, este fato compreensão/interpretação se impõe. Vejo mais e mais, aqui e ali, comentários e análises muitas delas esclarecedoras. Uma sugestão faço aqui – coloque no google a toda a frase < TECNOLOGIAS INTELECTUAIS E OS MODOS DE CONHECER: NÓS SOMOS TEXTO > , de Pierre Lévy, e examine um sem número de ‘imbricações’.

quarta-feira, 14 de janeiro de 2009

A Ética da Virtude (como considero o que seja 'Ética')

         
Esta exposição pretende discutir algumas questões que permitem formular uma idéia do que seja uma abordagem alternativa sobre a moralidade (um tanto diferente das correntes éticas mais majoritárias), denominada genericamente de Ética da Virtude. Tenho receios que esta despretensiosa apresentação esboce mais as dificuldades do que as boas perspectivas que esta abordagem possa conter, mas ainda assim seria um exemplo da complexidade e do rol de aspectos que estão subjacentes – e que necessitam adequada reflexão - quando se discute a moralidade.
         Para muitos, a questão ética fundamental se resume em perguntar “O que devo fazer?” ou mesmo “Como devo agir?” Supomos que a Ética nos dê “princípios morais” ou regras universais que nos digam o que fazer. Alguns, por exemplo, acreditam que “todos estão obrigados a fazer aquilo que proporcionará o maior bem para o maior número de pessoas”; outros aceitam o princípio básico do filósofo Immanuel Kant de que “ qualquer um é obrigado a agir somente de modo a respeitar a dignidade humana e os direitos morais de todas as pessoas”.
         Princípios morais como estes focalizam basicamente as ações, o fazer humano, e nós aplicamos estes princípios nos perguntado o que eles requerem de nós em circunstâncias particulares, como quando consideramos mentir ou cometer um ato extremo. Aplicamos estes princípios também quando agimos profissionalmente, como administradores ou médicos, e vemos surgir muitos institutos e centros de ética, devotados a promover programas e iniciativas voltadas à ética dos negócios, bioética, ética nas políticas públicas, etc. Estes centros e institutos examinam as implicações morais que estes princípios têm para nossa vida.
         Mas será que somente princípios morais contribuem para podemos pensar sobre o que seja ético? Enfatizar somente princípios pode então determinar que nossa vida se resuma em checar escrupulosamente toda e qualquer ação frente uma tabela de regras contendo o que pode e o que não pode ser feito? Alguns estudiosos apontam que, para considerar efetivamente o que seja “Ética”, devemos atentar para um outro componente também fundamental, as virtudes. Assim, não se trata somente de se perguntar como devemos agir; uma questão importante que podemos nos colocar é “ “que tipo de pessoas devemos ser?” De acordo com a Ética da Virtude, existem certos ideais como a excelência e a dedicação ao bem comum, aos quais devemos atentar visto que eles nos permitem desenvolver de modo pleno nossa humanidade.
         Virtude, em grego arête – excelência, origina-se do Latim vir, virtus, e exprime, em primeiro lugar, o poder e mais geralmente a força de vontade. Designa igualmente, por extensão, a eficácia ou aptidão concreta para agir que pertence a um objeto, como por exemplo, a virtude de um veneno. Para alguns gregos clássicos, existe uma virtude para cada coisa quando esta coisa perfaz sua natureza de maneira excelente: a virtude do cavalo é correr bem; a virtude do Homem seria desabrochar suas potencialidades sob o domínio da razão. O que denominamos ‘virtude’ seria um traço de caráter merecedor de admiração, tornando seu possuidor melhor, seja do ponto de vista moral, seja do ponto de vista intelectual, seja no comportar-se em condições específicas. Tradicionalmente esta escola inicia-se com Platão e Aristóteles, que investigaram a possibilidade de haver uma unidade das virtudes e o modo como a correta posse de uma virtude determina ou não a posse de outras.
         Diferentes visões do que seja virtude moral e sua relação com outras virtudes fundamentam o pensamento ético platônico, aristotélico, estóico, cristão, iluminista e romântico, além do pensamento do século XX. Estas diferenciações retratam as principais preocupações contextualizadas em cada época, ilustradas pelas necessidades materiais e culturais ali predominantes, como p. ex. a caridade, a resignação e a castidade no período cristão - o que por sua vez eram um tanto incompreensíveis para os gregos. Por outro lado, mesmo a ‘magnificência’ grega de Aristóteles seria hoje para nós algo complexo para ser entendido como um bem em si, como um elemento constituidor do “homem magnânimo”.  Hume considerou virtude como um traço de caráter com o poder de realizar o amor ou o orgulho, ao ser útil ou agradável tanto para seus possuidores quanto para as pessoas que seriam por elas alcançados ou favorecidos. Já Kant considerava virtude somente como um traço que poderia operar no cumprimento do dever, não possuindo um valor ético independente.
         O que se entende por virtudes particulares tem variado ao longo dos séculos. Na ética da virtude clássica, eram consideradas por Aristóteles virtudes principais (ou “virtudes cardeais”) a mansidão, a franqueza, a temperança, a magnanimidade, a coragem, o conhecimento prático (a phronesis grega, ou sensatez, segundo alguns autores), e a justiça, a maior delas. Na Idade Média foram adicionadas pelos filósofos cristãos a esta lista as virtudes teologais -  virtudes cujo objeto, no contexto religioso, é Deus - como sendo a fé, a esperança e a caridade (ou amor). Não obstante, consideramos que todas as abordagens sistemáticas sobre Ética têm algo a dizer sobre traços de caráter, considerados como virtudes, e sobre a natureza do que seja virtude como um todo. Uma distinção típica é realizada entre virtude intelectual e virtude moral, mas há também importantes diferenças entre as tradições de teorias morais que focalizam a virtude, e as tradições éticas que, como dissemos, dão espaço para virtude somente de passagem, indiretamente. Muitas destas se valem de ‘virtudes’ complementando o trabalho principal de investigação ética de formular os últimos princípios, leis ou regras de moralidade. Para elas, virtudes constituem efetivamente o análogo interno de um conjunto de princípios morais, inclinando seu possuidor a obedecer ou seguir o que as regras prescrevem, já que visam – virtudes e regras – alcançarem os mesmos objetivos.
         Mas enfim, qual é a natureza de “virtude”? Uma virtude, como a honestidade ou generosidade, não é somente a tendência de fazer o que é honesto e generoso, ou ter simplesmente um traço de caráter desejável ou moralmente valioso. Sim, é um traço de caráter, ou seja, uma disposição, uma inclinação intrínseca de seu possuidor. Mas é algo que não se reduz a um hábito; não é a simples disposição de se fazer atos honestos, ou agir honestamente por certas razões. Uma virtude é uma disposição multifacetada, ligada a muitas outras ações, ligada a emoções e reações emocionais, ligada a valores, desejos, atitudes, interesses, expectativas e sensibilidades. Possuir uma virtude é ser uma pessoa que possui um complexo esquema mental. Portanto, é falso ou incompleto atribuir uma virtude com base em uma simples ação ou intenção.
         O aspecto mais significativo deste esquema mental é ampla aceitação, por parte da pessoa que detêm certa virtude, de um continuum de considerações como razões para agir de modo ético. Exemplificando, imagine uma pessoa que se considera ‘honesta’. Ela não pode ser simplesmente assim identificada em razão de que comercializa honestamente e não trapaceia. Se estas ações são realizadas meramente porque a pessoa pensa que honestidade é a melhor estratégia comercial ou porque ela teme ser presa se assim não proceder, AO INVÉS de reconhecer como razão relevante que “Agir diferente seria desonesto”, aquelas não seriam ações de pessoa honesta. Outro exemplo: uma pessoa honesta não pode ser identificada como a que fala ocasionalmente a verdade porque simplesmente é a verdade, mas sim como a pessoa que reconhece o fato de que “aquilo seria mentira”, como a mais forte razão para não fazer certas afirmativas, em certas circunstâncias. Adicionalmente, esta pessoa crê, confia na importância de que a correta razão para dizer a verdade seria considerar o valor “aquilo é a verdade”.
         Assim, as razões para agir e as escolhas de uma pessoa honesta com respeito a ações honestas e desonestas refletem as suas visões sobre honestidade e verdade, e suas visões manifestam a si mesmas com respeito a outras ações ou reações emocionais e afetivas. Esta pessoa, valorizando honestidade como ela faz, escolhe pessoas honestas para se relacionar, trabalhar, ter amizades, leva seus filhos a serem honestos. Esta pessoa certamente desaprova desonestidade em amplo espectro, não se alegra com histórias e relatos de fraudes ou mensalão. Ela despreza ou lamenta aqueles que se realizam por meios desonestos em vez de pensar que são “espertos”; fica chocada ou estressada quando pessoas próximas ou queridas agem desonestamente, e assim por diante. Em resumo, parece que podemos dizer que alguém é honesto não somente observando uma ou outra ação, mas também observando outras ações e os motivos, as razões pelas quais a pessoa age, ao longo do tempo e nas diversas circunstâncias. Esclarecidas estes aspectos, podemos tentar discutir alguns contornos do que seria uma Ética voltada às virtudes.
O que hoje em dia se denomina Ética da Virtude era a forma proeminente de teorização ética no mundo antigo, mas foi largamente ignorada durante a era moderna. Houve recentemente uma espécie de novo interesse neste tipo de consideração, em parte por causa da insatisfação com os caminhos que a filosofia moral tomou até então. Esta filosofia enfatizou a obrigação moral e a lei moral, à custa das fontes morais da vida interior e da personalidade da pessoa. E, neste particular, a ética da virtude tem procurado adaptar antigas idéias de virtude aos requisitos da teoria ética atual e às questões práticas da ética aplicada.
Como vimos, a ética da virtude origina-se na Grécia Clássica, em especial com Aristóteles, que sustentou que uma compreensão apropriada do que é reto e admirável na ação humana não pode ser capturado por princípios ou regras gerais, mas é, antes, pertinente a uma ampla sensibilidade e fino discernimento, qualidades estas incorporadas em bons hábitos de pensamentos, desejos e ações morais. E muitos notáveis pensadores que se denominam filósofos éticos da virtude tendem a considerar mesmo que teorização ética constitui algo equivocado, mal orientado, pois a vida moral seria por demais rica e complexa para ser captada por abordagens utilitaristas, conseqüencialistas, kantianas ou contratualistas que procuram traduzir a eticidade em princípios essenciais, fundamentais, unificados.
Mais recentemente certos estudiosos da ética da virtude começaram a ver esta abordagem como representando uma vantajosa e distinta maneira de se engajar na teorização ética, ainda que com contornos não muito claros. Alguns entusiastas nesta tradição simplesmente desejaram associar um ou outro conjunto de princípios morais, complementados com um conjunto de ações ou traços virtuosos. Outros, e constituem uma corrente mais majoritária dentro desta tradição Ética, têm procurado identificar uma ética da virtude genuína, desembaraçada de qualquer influência ou “contaminação”, independente das outras correntes mais importantes, mais conhecidas.
         Mas o quê então distingue a ética da virtude com outros modos de fazer ética? Como em muitos outros campos da Filosofia, definições precisas são difíceis de delinear, mas o contraste mais importante, como vimos, existe com as formas éticas baseadas em regras, princípios e leis morais. Na Ética da Virtude, o foco é posto no indivíduo virtuoso e em seus traços, disposições e motivos íntimos, que justamente o qualificam como virtuoso. Algumas formas de ética da virtude reconhecem regras morais gerais e mesmo leis, mas estes são tipicamente tratados como fatores derivados ou secundários.
         Assim, muitos filósofos modernos pensam que a vida moral é assunto  apropriadamente relacionado com regras morais, mas na Ética da Virtude clássica, do Mundo Antigo, e em algumas instâncias da Ética da Virtude encontradas na moderna ou recente Filosofia, a correta interpretação da vida ética requer primariamente que se compreenda o que é ser um indivíduo virtuoso ou o que é possuir uma ou outra virtude particular concebida, como vimos, como um traço ou disposição da pessoa. Portanto, a primeira coisa que se afirma sobre a Ética da Virtude -  na tentativa de distingui-la de outras abordagens -  é que ela é focada no agente, e não em atos, em ações, como a ética conseqüencialista moderna e as visões baseadas em regras morais, que se supõem governarem as condutas humanas.
         Mas outra característica importante deve ser mencionada. Uma ética de regras vai tipicamente caracterizar os atos como moralmente certos ou errados, moralmente sancionados ou obrigatórios, dependendo de como eles estejam de acordo com regras apropriadas. Estes termos morais são denominados ‘deônticos’ (da palavra grega para ‘necessidade’, ou ‘obrigatório’), e contrastam outra classe de termos éticos que possuem menor ou menos imediata conexão com regras, os denominados termos ‘aretaicos’ (da palavra grega arête - ‘virtude’, ou ‘excelência’ ), como por exemplo, os termos ‘admirável’, ‘virtuoso’. Ética da Virtude faz uso primariamente de termos aretaicos nas suas caracterizações éticas, e trata os termos deônticos como derivados dos aretaicos. Assim, ética da virtude pensa antes em termos do que é nobre ou ignóbil, admirável ou deplorável, bom ou mau, do que em termos do que é obrigatório, permitido ou errado.
         Há Éticas da Virtude que são mais radicais que outras. Aristóteles, no seu livro Ética a Nicômaco, focaliza mais os traços íntimos e de personalidade do indivíduo virtuoso do que naquilo que faz de uma ação virtuosa, reta ou nobre. Para este autor, a retidão ou excelência de uma ação não depende essencialmente dos motivos ou hábitos que deram origem a ela. O indivíduo virtuoso é aquele que, antes de basear-se em regras, é sensível e inteligente o suficiente para perceber o que é nobre ou correto em sua variabilidade de circunstância a circunstância. Mas, por outro lado, temos que apontar aqui que sua explicação da percepção parece indicar que ser virtuoso envolve estar ligado a fatos independentes do virtuosismo de alguém sobre quais atos seriam admiráveis ou retos.
         Um tipo mais radical de ética da virtude diria que o caráter ético das ações não é até independente de como, porquê e por quem as ações são realizadas. Antes, o que é independente e fundamental é nossa avaliação e compreensão dos hábitos e motivos humanos, e a avaliação de ações é inteiramente derivada e dependente do que se tem a dizer eticamente sobre a vida interior dos agentes que realizam a ação.
         Um problema na consideração da ética da virtude seria por vezes o uso inadvertido de termos deônticos como “deve”, “necessita”, por causa da força e vigor que possuem, em comparação com os termos aretaicos. Mas esta aparente superioridade parece ser enganadora. Condenaríamos mais fortemente uma ação se disséssemos que ela é moralmente errada do que se disséssemos que ela seria moralmente ? Ou, recomendaríamos mais fortemente contra uma ação dizendo que ela seria errada do que dizendo que seria má? Entretanto, mesmo que um termo aretaico não seja em princípio mais fraco em força do que um termo deôntico, pode-se afirmar que alegações deônticas são mais fortes do que as avaliações aretaicas, que tendem a ser mais neutras, moralmente falando. Parece haver então certo problema lingüístico subjacente à adequada definição terminológica nestes campos, mas permanece o fato de que a ética da virtude é baseada não em códigos, leis ou normas, mas no agente, na pessoa. Assim, deve derivar suas considerações acerca das ações humanas (não importando se estas são aretaicas ou deônticas) a partir de caracterizações fundamentais e independentes de cunho aretaico sobre os traços íntimos dos indivíduos, ou dos indivíduos mesmos.
         Considera-se que alguns motivos elevados, como a benevolência, cuidado, autonomia, justiça, responsabilidade subjazem a muitas teorizações éticas a partir de virtudes, mas os diferentes estudiosos não exibem consenso sobre suas adequações entre os diversos sistemas, e este é um dos pontos fracos desta abordagem. Muitos pesquisadores consideram que o revivamento atual da ética da virtude implica que muita discussão deve ser ainda travada até que se encontrem patamares mais claros sobre as possibilidades de realização das promessas desta visão. Encerrando esta breve apresentação, vamos ilustrar com uma estória possível algo da complexidade, do desafio de raciocinar a moralidade a partir de virtudes.
         Imagine um doente de câncer incurável. Ele pode seguramente se beneficiar de uma habilidade em esconder de si mesmo a evidência de que possui uma doença terminal. Como ficaria nosso julgamento sobre esta sua estratégia? Nós tendemos a julgar esta pessoa menos admirável do que outra pessoa que, na mesma situação, exibisse coragem de enfrentar este supremo desafio com tenacidade, que fosse menos desonesta consigo mesma, ainda que se saiba que esta sofreria mais e pudesse morrer mais cedo do que o outro doente.  Assim, algumas virtudes legítimas parecem não beneficiar seu detentor como se poderia esperar. Obviamente uma pessoa que enfrenta corajosamente sua doença pode evitar que suas amizades tenham que compartilhar uma mentira, beneficiando-as, mas pode ser mais difícil para ela lidar com estados de pânico e depressão se souber de seu estado terminal, e  deste modo fazer também outros sofrerem com seu estado...
         Portanto, as situações que demandam reflexões sobre a moralidade dos atos humanos a partir de virtudes apresentam de igual modo a necessidade que os elementos de análise sejam convenientemente explicitados, explanados, diríamos até com certa prudência  (que é uma apreciada virtude...)  A vida é por demais complexa e temos que averiguar com cuidado todas as suas nuances, seus determinantes e suas determinações.

terça-feira, 13 de janeiro de 2009

Violência Cotidiana

Já se tornou comum expressar-se a noção da violência como algo banalizado, costumeiro, como que imbricado nas atividades que todos usualmente temos que realizar. Os estudiosos apontam que violência, em especial a dirigida contra a mulher, minorias, o idoso ou à criança, ainda que momentaneamente nos sensibilizem, não têm atualmente o condão de suscitar em nós maior reação do que um enfado ou passiva indignação, beirando a conformismo puro e simples. Na origem e manutenção da conduta violenta, estes mesmos estudiosos apontam falhas na educação familiar e escolar, determinando que o comportamento geral cidadão comum por vezes é o veículo 'multiplicador' desta cultura de violência, com seu individualismo exacerbado, com o consumismo desenfreado e os propagados valores de uma vida descartável e passageira. Como na política e  no futebol, todos temos nossas teorias porque chegamos a este estado de coisas.
            
 Modestamente me atrevo a provocar algumas reflexões, oriundas de minhas observações pessoais. Dizem que a beleza está nos detalhes, e ouso dizer que as relações interpessoais estão violentas já no 'varejo', o que diríamos no 'atacado'. Me explico – um dos atos que considero mais comezinho de urbanidade, de convivência social, é precisamente cumprimentar o vizinho, o colega de trabalho, um senhor ou senhora que cruzamos na rua, mesmo uma criança pequena que nos dirige o olhar. O que vemos hoje é um desfile de carrancas e concomitantes negações deste simples gesto, nos mais variados cenários (e mais lamentavelmente no próprio lar), o que já nos contamina e predispõe a devolver ao próximo passante a descortesia, e assim vamos disseminando uma intransigência pela simples presença do outro. Parece que o sorriso é uma expressão cada vez mais escassa, recebida somente em situações de interesse, nem sempre manifesto. Como podemos esperar gestos de compreensão e tolerância, voltados à manutenção uma cultura de convivência harmônica, de solução pacífica dos naturais conflitos, com base na sonegação ampla e generalizada de atos simples de gentileza, de palavras afáveis e olhares receptivos como vemos hoje?

Não nos apercebemos do mal que originamos ao tratar o circunstante com qualquer tipo de desconsideração, ainda que involuntária, por menor que seja. O contínuo recebimento do desdém, do desprezo do outro, somando-se aos inúmeros eventos semelhantes já vívido, expressivo em sua memória, faz o desventurado por vezes exorbitar do que julga ser razoável para ele próprio, como que 'autorizando', justificando o comportar-se de igual ou pior modo. E a cena está posta para os descalabros que assistimos todo dia, o que nos faz pensar duas vezes em ligar ou não a TV ou a comprar um jornal na banca da esquina. 

Todos os antigos lembram nesta hora 'os velhos tempos' quando, sob a denominação do termo 'escrúpulo', resumiam-se diversas maneiras de proceder em sociedade como denotativo de um caráter elevado ao seu detentor. Os pais e familiares efetivamente treinavam seus rebentos nas maneiras aprimoradas de convivência (isso era ponto de honra), que incluía o respeito aos demais, a polidez, o 'desconfiômetro' – a capacidade de se auto analisar quanto à possibilidade de estar aborrecendo ao próximo – e, principalmente, o amplo cultivo de virtudes, entendidas como aquelas disposições constantes da mente e do espírito as quais, por um autônomo esforço da vontade, inclinam seu possuidor à prática do bem. Assim, a pessoa escrupulosa era tida como um modelo de cidadão, de pessoa, merecedora de confiança e admiração. Mas parece que os valores pós-modernos não se coadunam com esta formulação. Não causa mais espécie uma pessoa ter a vida desregrada, desdourada, tresloucada, e julgar-se no 'direito' de nos afrontar, com diferentes graus, impondo-nos um verdadeiro suplício de Tântalo. Talvez evoque, quando muito, um enfado ou um esgar...

sexta-feira, 9 de janeiro de 2009

Cavalheirismo - fora de moda ?


O tema do cavalheirismo não costuma freqüentar as discussões sobre as relações interpessoais em gerais e nas relações homem-mulher, em particular. Talvez isso seja devido a algumas mudanças ocorridas nos valores que fundamentam nossas condutas sociais.

Mesmo vendo o filme, poucos se deram conta de que o Titanic, após colidir com um iceberg, teve pouco mais de um terço dos seus passageiros sobreviventes, a maioria de mulheres e crianças. Isto ocorreu devido ao fato de que muitos homens se recusaram a entrar nos botes salva-vidas porque não estavam certos de que todas as mulheres e crianças estavam embarcadas neles. Um oficial do navio que sobreviveu, ao ser perguntado se a máxima ‘mulheres e crianças primeiro’ era uma regra do navio ou uma tradição dos mares, o mesmo respondeu que era uma regra da natureza humana.
As pessoas que ainda cultivam semelhante código de valores certamente se constrangem ao ver como o belo sexo é ofendido física ou verbalmente hoje em dia, em especial aquelas que esperam bebês. Alguns críticos afirmam que esta espécie de degradação de nossa civilização se deve em parte às feministas, que diziam o cavalheirismo ser uma modalidade de tirania sutilmente disfarçada. Por outro lado, desde os anos 60 as maneiras do século XIX têm sido desdenhadas como rígidas e ultrapassadas.

Ao que parece, normas gerais de etiqueta parecem ter saído de moda. Modernamente, nossa cultura cibernética algo anárquica como que encoraja imediata gratificação e máxima auto-expressão, a qualquer custo. As mulheres engrossam as estatísticas de condutas desabonadoras praticadas em grande escala, evidenciadas principalmente pela violência, desordens coletivas e abusos de drogas, legais ou proscritas.

Sou daqueles que acreditam que as regras de etiqueta em geral e o cavalheirismo em particular são expressões que complementam as relações interpessoais onde a Lei não alcança, facultando, de um lado, viabilizar vivências enriquecedoras e, de outro, o aperfeiçoamento das instituições, principalmente o casamento. Os valores pelos quais as pessoas são ensinadas a pautar suas ações, não importa a que se dirigem, são determinadas em grande maioria pelo cuidado com que a Sociedade zela pelo constante aperfeiçoamento do mecanismo de ensino destes mesmos valores aos seus membros mais jovens. Ao vermos que a família, como núcleo básico da Sociedade, se encontra enfraquecida, o quê diremos dos valores acessórios, complementares da vida social?

As pessoas internalizam os motivos mais equivocados para autorizarem-se praticar condutas denotativas de falta de urbanidade, de educação. A tônica atual de nossos dias é pelo individualismo, não-cooperação, falta de solidariedade. A re-aprendizagem de valores intrinsecamente humanos, solidários, pressupõe uma reflexão aprofundada sobre os modos como nos tratamos mutuamente, em especial aqueles dirigidos às mulheres e crianças – e também aos idosos... Este repensar é fundamental não somente para dar um novo sentido a temas como etiqueta e cavalheirismo , mas para viabilizar a continuidade de um ensino efetivo destes valores às futuras gerações.

Os gregos clássicos vêm em nosso socorro para compreendermos porque ocorre tamanha modificação nos modos de tratamento entre as pessoas hoje em dia. Esquecemo-nos da ‘regra de ouro’ helênica, que rezava ser um contra-senso desejar-se conhecer o mundo externo, sem antes esforçarmo-nos para conhecer o mundo interno. “Conhece-te a ti mesmo” parece ser ainda hoje um sábio conselho, e a falência das pessoas em conhecer a Felicidade repousa numa série de equívocos, a começar pelo privilégio que se concede às coisas “de fora”, mais do que aquilo que nos é personalístico. Assim, a muitos pode parecer natural não cultivar mais o cavalheirismo, assim como espoliar, defraudar, violentar, impedindo o exercício adequado de nossa civilidade. Em muitos sentidos, creio que estamos não avançando pelo século XXI, mas rumando ao tempo da pedra lascada...

segunda-feira, 22 de dezembro de 2008

PSICOLOGIA & FENOMENOLOGIA: UMA LIGAÇÃO NECESSÁRIA

Neste artigo, de pretensões meramente didático-propedêuticas, irei discutir algumas noções básicas da abordagem fenomenológica husserliana e seus liames com a Psicologia. Uma grave lacuna da formação acadêmica nesta Ciência da conduta reside em prescindir do conhecimento de aspectos históricos e filosóficos que embasam o seu fazer (ou seja, que ajudam a consubstanciar, na prática, os conceitos fundamentais do campo de conhecimento). Por isso nosso objetivo aqui é sugerir um percurso de estudo e reflexão que pode ser proveitoso para estudantes dispostos a averiguar o material de estudo anexo, os termos, associações e autores referenciados.

No dicionário (FERREIRA, 1986), a palavra fenômeno pode explicitar vários significados: 1. Fato, aspecto ou ocorrência passível de observação; 2. Fato de interesse científico, suscetível de descrição ou explicação; 3. Fato de natureza moral ou social; 4. Pessoa que se distingue por algum talento extraordinário; 5. Pessoa, animal ou objeto excepcional por alguma particularidade; prodígio; 6. Objeto de experimentação; fato; 7. O que se manifesta à consciência, e 8. Na Filosofia de Kant, tudo que é objeto de experiência possível, i. e., que se pode manifestar no tempo e no espaço através da intuição sensível e segundo as leis do entendimento. As noções 6, 7 e 8 nos interessam propriamente neste nosso discurso, mas note, por agora, que a palavra fato é encontrada em vários dos sentidos possíveis. Mas antes vejamos o termo mais detidamente.

O termo Fenomenologia vem do grego phainomenon, coisa mostrada. Na moderna Ciência, especialmente na Física, é empregado para descrever um corpo de conhecimentos que relaciona diferentes observações empíricas entre si, de um modo consistente com uma teoria fundamental, mas não derivadas diretamente desta teoria. Por exemplo, expressões algébricas simples podem ser usadas para modelar observações ou resultados experimentais em diferentes amplitudes, massa e escalas de tempo, e utilizadas para fazer predições sobre os resultados de outras observações ou experimentos, não obstante o fato destas expressões em si não poderem ser (ou não terem sido) derivadas da teoria fundamental destes campos de conhecimento.

Outro modo de descrever Fenomenologia na Ciência geral é que ela faz a interface entre experimento e teoria. Ela é mais abstrata e abrange mais passos lógicos do que a experimentação, mas é mais ligada a ela do que a própria teoria. As fronteiras entre teoria e o fenômeno, e entre Fenomenologia e experimentação, são um tanto vagas e, em certo sentido, dependem da compreensão e intuição do cientista que está lidando com elas. Por outro lado, muitos pesquisadores poderão afirmar que a modelagem fenomenológica dos fenômenos não constitui necessária compreensão do fenômeno, mas concordarão que ela possui um papel válido no âmbito da Ciência. Para clarificar o que eu digo, pode ser útil relembrar a diferenciação de experimento – um procedimento metodológico, e experiência (Erfahrung). Vulgarmente, ‘experiência’ é o conhecimento e a habilidade obtidos gradualmente na vida prática, enriquecendo a personalidade e o pensamento. Na teoria do conhecimento, grosso modo, é a faculdade de apreender o real pela intuição sensível – experiência externa – ou intuição psicológica – experiência interna. Juntamente com a consciência, constitui o principal domínio dos estudos sobre a mente.

Mas como termo, Fenomenologia é mais conhecida como uma escola moderna de filosofia, fundada em 1901 por Edmund Gustav Albert Husserl, filósofo alemão nascido em Prosznitz (da Moravia, um dos domínios do então Império austro-húngaro) em 1859, e falecido em abril de 1938, com quase 80 anos, deixando em torno de 40 mil páginas taquigrafadas, fruto do seu ensino e pesquisa filosófica. A maior parte deste material, muito ainda inédito, está depositada nos Arquivos Husserl da Universidade de Louvain, na Bélgica e também em Colônia, na Alemanha, e na Escola Normal Superior em Paris. Husserl teve uma formação acadêmica em matemática na Universidade de Berlin, doutorando-se nesta disciplina em Viena, com apenas 23 anos de idade. Ali, a partir de 1884, passou a estudar com Franz Brentano (1838-1917), que o influenciou a estudar Filosofia. Em 1887 defendeu tese de Livre Docência na Universidade de Halle, denominada Sobre o Conceito de Número, e em 1916 passou a lecionar na Universidade de Friburgo, onde Martin Heidegger tornou-se seu assistente de 1919 a 1923. Dito brevemente, a Fenomenologia, como concebida por Husserl, se concentra em descrever detalhadamente a experiência consciente, enquanto suspensa (entendida como ‘colocada entre colchetes’ – [ ] , um símbolo matemático de associação, equivalente ao parênteses) de todas suas pré-concepções, interpretações e explanações. Em geral é entendida como uma metodologia de pesquisa qualitativa que se concentra em analisar mais a experiência mental do que o comportamento (COLMAN, 2003, p. 553).

A influência da Fenomenologia na Europa foi extensa e foi particularmente importante no início do desenvolvimento do Existencialismo, este, um termo um tanto vago, indefinido, que identifica a reação, liderada por Kierkegaard, contra o racionalismo abstrato da filosofia de Hegel. Contra a concepção hegeliana da consciência absoluta, na qual todas as oposições seriam supostamente reconciliadas, Kierkegaard insistiu na irredutibilidade do subjetivo, uma dimensão pessoal da vida humana. Ele caracterizou esta palavra ‘existência’ em termos da perspectiva da “existência individual”. Heidegger seguiu Kierkegaard utilizando o termo Existenz para descrever o modo de ser que é distintivo da vida humana, nomeando-a como Dasein, e contrastou-o com o modo de ser dos objetos que categorizamos em termos do seu uso (Zuhandenheit), e também do modo de ser dos objetos que em geral pensamos, em sua totalidade, como independente de nós (Vorhandenheit). Heidegger também sustentou que a característica distintiva da existência humana surge da irredutibilidade da preocupação prática com que somos postos a respeito de nossas vidas, no sentido de nosso próprio ser constitui-se como um problema, e o modo com que enfrentamos este problema determina a natureza de nossa existência. Não há uma essência humana fixa que proveja estrutura para a vida humana que seja independente dos engajamentos e objetivos, os quais, dando-nos um senso da utilidade de nossa identidade, satisfaçam plenamente nossa existência. Assim, a existência do Dasein é um “ser-no-mundo”, e o modo fundamental desta existência situada no mundo é a ação (e não a percepção contemplativa, apassivada). Como ‘ação’, define-se tradicionalmente (a) aquilo – conduta - que (b) alguém - o agente - realiza de (c) modo intencional. Dita de outra maneira, o fenômeno da ação humana tem sua importância (e não só para a Psicologia) principalmente nas questões relativas ao status metafísico do agente (quem realiza a ação), e nas questões éticas e legais sobre a liberdade e responsabilidades humanas. Pode-se considerar uma pessoa, realizando alguma coisa intencionalmente, que isto resulta de algo que esta pessoa acredita e que ela também deseja: equivale esta conjunção a dizer que esta pessoa tem uma razão para realizar aquela coisa, que seria precisamente a sua causa. A definição de ação pode ser parte de uma visão na qual determinada espécie de história causal distingue ações de outros eventos. Dizer das razões de alguém pode ser encarado como dizer do por que a pessoa fez o que fez, portanto, a idéia de distintos tipos de explanação das ações é possível quando uma ação é considerada como resultante de alguém ter razões para agir. Desse modo, temos também a consideração de diferentes tipos de pensamento a partir dos quais emergem as ações, envolvendo a compreensão de crenças, desejos, valoração, intenção e escolhas.

Assim, no século XX, como vimos, Fenomenologia foi principalmente usado como um nome para designar um movimento filosófico com o objetivo primário de dirigir a investigação e a descrição de fenômenos como experienciados conscientemente, sem teorias sobre suas explicações causais e tão livre quanto possível de pressuposições e pré-concepções. Mas o termo em si é muito mais antigo. Ele já é encontrado no século XVIII quando o filósofo e matemático suíço Johann Heinrich Lambert o empregou na parte de sua teoria do conhecimento, que distinguia verdade da ilusão e erro. No século XIX a palavra tornou-se associada principalmente à obra de Hegel Phenomenology des Geistes, (Fenomenologia da Mente, de 1807), que investigou o desenvolvimento do espírito humano desde a mera experiência sensorial até o que ele denominou “conhecimento absoluto”. O denominado Movimento Fenomenológico não surgiu antes do início do século XX, mas incluiu tantas variedades que uma caracterização precisa do seu objeto necessita ser considerada. A partir deste modesto rol das fenomenologias que se relacionam direta ou indiretamente do trabalho original do filósofo austríaco Edmund Husserl, vemos que é complexo identificar um denominador comum neste amplo movimento, além da fonte comum. Mas situações similares ocorrem em outros movimentos, filosóficos ou não.

Todos os que se consideram fenomenólogos aceitam a divisa, o lema husserliano Zu den Sachen selbst (às coisas mesmas), que significa a tomada de nova abordagem ao fenômeno concretamente experienciado, um contato, como dissemos, tão livre quanto possível de pré-concepções conceituais, tentando descrevê-lo o mais veridicamente possível. Além do mais, muitos partidários da Fenomenologia assumem ser possível obter insights das estruturas essenciais e das relações fundamentais dos fenômenos com base num estudo cuidadoso de exemplos concretos providos pela experiência ou pela imaginação e pela variação sistemática destes exemplos na imaginação. É necessário estudar os modos como o fenômeno surge na consciência intencional (querendo dizer, consciência dirigida-a-objetos). Em outras palavras, Husserl discutiu em sua abordagem a intuição das essências e suas estruturas, ou Wesensshau. Fenomenologia seria a disciplina que se ocupa da análise descritiva das essências em geral.

Fenomenologia não se posiciona fora das ciências mas, antes, tenta fazer compreensível o que toma lugar nas várias ciências e assim, tematizar as pressuposições inquestionáveis das mesmas. Husserl achava que existia grande contraste entre o grande sucesso das ciências da natureza e o relativo fracasso das ciências humanas. Na era moderna, o conhecimento científico se tornou fragmentado em torno de um conhecimento transcendental com contornos objetivistas e fisicalistas, permanecendo muito tempo irresolvido. Isto se determinou devido às tentativas de se aplicar nas ciências do homem metodologias baseadas em procedimentos pertinentes às ciências exatas e naturais – um empreendimento destinado ao fracasso. Husserl ilustra este aspecto com o exemplo de Galileu e sua matematização do mundo. A verdade característica no mundo vivido não é de modo algum uma forma inferior de verdade, quando comparada com as formas científicas, exatas, de verdade mas já é, certamente, verdade, e de modo invariável, também pressuposta nas pesquisas da Ciência. Por isso Husserl afirmou que uma ontologia do mundo da vida deveria ser desenvolvida, ou seja, em outras palavras, ser desenvolvida uma análise sistemática dos empreendimentos e aquisições constituintes deste mundo da vida, que é, por sua vez, o fundamento da constituição científica de todo sentido. A mudança estimulante que aqui ocorre consiste no fato de que verdade, há muito, é mensurada seguindo um critério de uma exata determinação ou delimitação. Para isso é decisivo não a exatidão, e sim, antes, o papel exercido por aqueles atos fundadores do mundo da vida. Existem hoje basicamente duas direções para se conhecer o mundo, o modo objetivista e fisicalista, e o modo e o subjetivismo transcendental. É papel da Fenomenologia superar esta divisão, pensa Husserl, auxiliando a Humanidade a viver de acordo com as demandas da Razão. Assumindo que a Razão é a típica característica do gênero humano, esta deve já encontra-la (a Razão) através da Fenomenologia.

Aprender a empregar eficientemente a Razão não prescinde da consideração da experiência. Sobre ela, além do seu mero aspecto estático, alguns estudiosos desejam investigar seus aspectos genéticos explorando, por exemplo, um fenômeno objetivado. Tomemos como ilustração, a forma de uma flor - ela constitui-se a si mesmo no desvelar típico de uma experiência. Husserl mesmo acreditava que estes estudos requeriam, como vimos, uma prévia suspensão da crença na realidade do fenômeno, enquanto outros consideravam que isso era dispensável, se bem que ajudava. Além disso, na Fenomenologia existencial, como vimos com Heidegger, os significados auferidos com a experiência de certos fenômenos (como p. exemplo a ansiedade) são explorados mediante uma fenomenologia interpretativa (dita “hermenêutica”), uma metodologia que vai ser magistralmente clarificada por Hans-Georg GADAMER (1997; 1999; 2000a; 2000b e 2002), posto que envolve a linguagem.

Nesta tarefa de esclarecer o papel da experiência, para destacar algo da distintiva essência da Fenomenologia (e para atender a alguns objetivos didáticos desta oportunidade), pode ser útil confronta-la com algumas de suas vizinhanças filosóficas. Contrastando com o Positivismo e ao tradicional Empirismo, no qual o professor vienense de Husserl, Franz Brentano, trabalhava, apesar de ambas as tradições assumirem positivamente os dados da experiência (*), a Fenomenologia não restringia estes dados ao nível da experiência sensorial, mas admitia em termos iguais os tais dados “não-sensoriais” (categoriais) como relações e valores, contanto que apresentassem a si mesmos intuitivamente.

Confrontado com o fenomenalismo - uma posição na teoria do conhecimento (ou Epistemologia) com a qual é por vezes confundida [doutrina que afirma que os objetos físicos são reduzíveis a experiências sensoriais, ou que afirmativas sobre objetos físicos podem ser analisadas em termos de afirmativas fenomênicas que descrevem a experiência sensorial], a Fenomenologia – que não se constitui primariamente uma teoria epistemológica – não aceita nem a rígida divisão entre aparência e realidade tampouco a visão limitante de que fenômeno é tudo o que é, a totalidade (e que se traduz em sensações ou possibilidades permanentes de sensações). Para a Fenomenologia estas questões estão em aberto, ao passo que o fenomenalismo claramente negligencia as complexidades da estrutura intencional da consciência humana a respeito dos fenômenos.

Ao contrário do Racionalismo, que enfatiza o raciocínio conceitual à custa da experiência, a Fenomenologia insiste no embasamento da intuição, verificação dos conceitos, e especialmente na totalidade das afirmativas a priori. Em conjunto com a Análise Lingüística, compartilha a distinção entre o fenômeno refletido nas tonalidades de significado da linguagem ordinária como um possível ponto de partida para a analise fenomenológica. Entretanto, os fenomenólogos não assumem que o estudo da linguagem comum constitua uma base suficiente para estudar o fenômeno, visto que a linguagem ordinária não pode revelar completamente a complexidade do fenômeno. Por outro lado, em contraste com a Filosofia existencial, que acredita que à existência humana não se permite uma análise e descrição fenomenológica, posto que se tentaria objetificar o que não pode ser objetificado, a Fenomenologia sustenta que pode e deve lidar, ocupar-se dela, ainda que cautelosamente, como qualquer outro intrincado, complexo fenômeno ligado a esta nossa humana existência.

Sobre a doutrina husserliana, dois pontos criticados pelo seu autor merecem agora ser discutidos. O primeiro, seria (a) o naturalismo, e o segundo, (b) o historicismo. A noção geral sobre a posição naturalista é que ela considera que tudo o que existe é natural, e tudo o que pertence ao mundo da Natureza pode ser estudado pelos métodos apropriados, e as aparentes exceções podem ser, de qualquer modo, sempre explicados. Em outras palavras, naturalismo tenta aplicar os métodos das ciências naturais a todos os domínios do conhecimento, inclusive ao campo da consciência. Assim, a razão se torna também ‘naturalizada’. Embora uma tentativa seja realizada no sentido de encontrar-se uma fundamentação para as ciências humanas (a chamada Geiteswissenschaften) por meio da psicologia experimental, fica este empreendimento demonstrado ser impossível, porque, assim procedendo, fica o estudioso impossibilitado de captar precisamente o que está em jogo no âmbito do conhecimento, como encontrado nas ciências naturais. O que o pesquisador deveria examinar seria o relacionamento entre a consciência e o Ser e, nesta empreitada, deve perceber que deve partir do ponto de vista da epistemologia, já que o Ser se torna acessível a ele somente como um correlato dos atos conscientes. O estudioso deve prestar cuidadosa atenção como o que ocorre nestes atos, e isto somente pode ser auferido por uma ciência que tenta realizar a compreensão (Verstehen) da real essência da consciência. Esta é a tarefa que a Fenomenologia se propôs, e isto, a clarificação dos vários tipos de objetos que se obtém dos modos básicos da consciência é que torna o pensamento husserliano próximo da Psicologia.

Na Fenomenologia a consciência é tematizada numa definitiva e muito especial configuração, justamente na medida em que ela é o lócus no qual todo modo de constituição e de encontro de sentido encontra seu espaço. Na intuição humana, ocorrências conscientes devem ser dadas imediatamente no sentido de evitar a introdução ao mesmo tempo de interpretações indubitáveis, infalíveis. A natureza de processos tais como percepção, representação, imaginação, julgamento e sentimento devem ser auto-auferidos de modo imediato. A alusão “às coisas mesmas” remete não um realismo – um certo distanciamento ou grau de independência da mente, do mental - mesmo porque estas coisas em jogo são atos da consciência, e as entidades objetivas de tal modo são constituídas nela, e estas coisas formam o domínio do que Husserl denomina ‘ fenômeno’. Assim, os objetivos da Fenomenologia visam os “dados absolutos apanhados em imanente e pura intuição” (imanente é “o que está contido em ou que provém de um ou mais seres, independentemente de ação exterior” e, como termo, opõe-se à idéia de transcendente, que “é o que não resulta do jogo natural de uma certa classe de seres ou de ações, mas que supõe a intervenção de um princípio que lhe é superior”). A meta da Fenomenologia é descobrir as estruturas essenciais dos atos da consciência (as noēsis) e as entidades objetivas que lhes correspondam, os objetos intencionados (os denominados noēmas).

Fenomenologia também tem que ser distinguida do historicismo, uma filosofia que afirma a imersão de todos os pensadores dentro de uma estrutura histórica particular. Husserl objetou ao historicismo porque ele implica em relativismo, que é a atitude ou doutrina que afirma que as verdades (morais, religiosas, políticas, científicas, etc.) variam conforme a época, o lugar, o grupo social e os indivíduos. Ele deu crédito a Wilhelm Dilthey, autor de Entwürfe zur Kritik der historischen Vernunft (‘Esboços para a Crítica da Razão Histórica’) por ter desenvolvido a tipificação das visões de mundo, mas ele duvidava e mesmo rejeitava o ceticismo que fluía necessariamente da relatividade destes vários tipos. História está preocupada com fatos, enquanto que Fenomenologia lida com o conhecimento das essências. Para Husserl, a doutrina da visão de mundo de Dilthey (Weltanshauungen) era incapaz de aquilatar, de alcançar o rigor requerido por uma ciência genuína. Nada deve ser aceito como dado de antemão; o estudioso e pesquisador devem tentar encontrar o caminho voltando aos princípios verdadeiros, autênticos. Isto equivale a dizer que se deve tentar encontrar o caminho nos fundamentos do significado que se obtém na consciência. O conhecimento empírico tem validade relativa e nunca absoluta ou apodítica – aqui significando o que é demonstrável ou do que é evidente, valendo, pois, de modo necessário e, por extensão, algo irrefutável. Isto é, com Husserl, o que se acredita que deve ser procurado num conhecimento científico das essências, em contraposição a um conhecimento científico de fatos.

Fenomenologia parece constituir-se numa nova filosofia, uma teoria do conhecimento. Alguns dizem que na verdade seria um novo método de se fazer filosofia, possuindo mesmo algo como um ‘método fenomenológico’. O que se pode averiguar é que a reflexão eidética (reflexão sobre as essências e suas conexões) está no coração da Fenomenologia. Esta reflexão requer, como veremos, a redução eidética, onde deslocamos nossa atenção de uma particular instância ou qualidade para uma propriedade em si, uma essência. Assim que o deslocamento se verifica, ocorre a “visão” da essência diretamente, e em sua totalidade. Adicionalmente, após a redução eidética, podem-se apreender, por intuição, as conexões entre as essências. Podemos intuir, por exemplo, que as essências do Ego e as essências de um ser que existe num determinado espaço revelam que o Ego pode perceber o existir-num-espaço, a espacialidade do ser, somente da perspectiva espacial, da essência de um algo que tem ‘espaço’.

Concretamente, o investigador fenomenológico deve examinar, numa atitude reflexiva, as diferentes formas de intencionalidade, visto que é precisamente na e através da correspondente intencionalidade que cada domínio dos objetos se torna acessível a ele. Conforme ensina VON ZUBEN (2006),

      (...)  A noção de intencionalidade aparece em Husserl na "Primeira Investigação" na "Quinta Investigação" e nas Idéias. (Cf. Recherches Logiques, 2 tomos, PUF, Paris; e Idées directrices pour une Phénomènologie. Ed. Gallimard, París.). Na "Primeira Investigação", a intencionalidade é colocada no âmbito da expressão. A palavra para Husserl é sempre significativa, não pode ser reduzida a seu caráter físico. Há uma unidade entre o som verbal e a intenção significativa.

Husserl tomou como porto de partida entidades matemáticas, examinando posteriormente estruturas lógicas, de modo a finalmente auferir o insight de que cada ser deve ser captado em sua correlação com a consciência, porque cada dado se torna acessível à pessoa somente na medida em que tem significado para ela. A partir desta posição se desenvolvem as ontologias locais ou regionais, ou domínios do ser, como por exemplo, a região da “natureza”, a região do “psíquico”, a região do “espírito”. Além disso, Husserl distinguiu ontologias formais – da região do lógico, das ontologias materiais.

De um modo mais especifico, o que poderia ser denominado um ‘método fenomenológico’, foi a atividade desenvolvida pessoalmente por Husserl, na qual ele trabalhou sua vida inteira, denominada “Redução”. Por isso devemos entender que o mundo deve ser colocado “entre parênteses”, ou seja, devemos realizar a epochē – que quer dizer suspender o julgamento com relação à existência de objetos na consciência. Por exemplo, analisando a essência dos objetos percebidos, não devemos assumir que estes objetos, como carros e relógios, simplesmente existam e que atraiam causalmente nossos órgãos de sentidos e, sim, devemos focar exclusivamente na estrutura essencial da consciência perceptual. Por isso se diz que devemos suspender, ou colocar entre parênteses nossa “atitude natural” frente ao mundo. O pesquisador fenomenológico assim age não porque deve meramente duvidar do mundo, mas porque este mundo existente não se constitui no tema verdadeiro da Fenomenologia. O verdadeiro tema da Fenomenologia é o modo como adquirimos o conhecimento deste mundo. Esta “redução” se compõe de 3 passos.

O primeiro passo é a redução fenomenológica: tudo o que é dado é transmutado num fenômeno no sentido de que é, como dissemos, conhecido na e através da consciência. Neste tipo de conhecer (que deve ser tomado num sentido amplo, incluindo p. ex. os modos conscientes da intuição, memória, imaginação e julgamento) a intuição é o mais importante, visto que é o ato em que a pessoa capta algo imediatamente em sua presença material, concreta, e é o ato que é primariamente dado, sobre o qual se fundamenta todo o resto. Esta redução re-flete (reverte) como num espelho, a direção do olhar da pessoa que está orientado para objetos, em direção, para o sentido do olhar agora dirigido à consciência.

O segundo passo constitui a redução eidética: o captar de um objeto pela consciência não é suficiente; ao contrário, os vários atos dela devem ser acessíveis de tal modo que suas essências – suas estruturas universais e imutáveis – possam ser firmemente captadas. Na redução eidética deve-se renunciar a tudo que é factual e que meramente ocorre desta ou daquela maneira. Como vimos, o modo de captar as essências é a intuição das essências e mais as suas estruturas, ou seja, é a Wesensshau, que não tem nada de misteriosa. Antes, pode-se conceber a multiplicidade de variações do que é dado, e enquanto mantendo, sustentando, preservando esta multiplicidade, pode-se focar, dirigir a atenção sobre o que resta imutável na multiplicidade, isto é, a essência – denominado de invariante por Husserl - é o algo idêntico que continuadamente se mantém durante o processo de variação.

O terceiro passo, a redução transcendental, vem completar o segundo passo. A redução transcendental consiste na reversão, num retorno às realizações do que Husserl, seguindo Kant, denominou a consciência transcendental, apesar de tê-la concebido dum outro modo. O evento mais fundamental que ocorre nesta consciência é o surgimento da noção do tempo, mediante os atos de protenção (entendido como uma espécie de projeção, dirigido ao futuro) e retenção (dirigido ao passado) algo como uma autoconstituição, neste âmbito. Realizar fenomenologia, para Husserl, era equivalente a retornar ao ego transcendental como o terreno para a fundação e “manufatura”, a construção de todo significado. Somente quando se adquire este fundamento, esta base, pode a pessoa auferir o insight que faz sua conduta amplamente transparente, e o faz compreender como surge o sentido, como o sentido baseia-se em outros sentidos, como as camadas vão se depositando num processo de sedimentação. Husserl trabalhou na clarificação da redução transcendental até o fim da sua vida. Precisamente nesta clarificação é que residiu a causa da divisão do movimento fenomenológico e na formação de algumas escolas que refutaram algumas posições propostas por seu idealizador.

Iremos agora, nesta parte final de minha exposição, tecer alguns comentários que explicitam aproximações entre a Fenomenologia e a Psicologia. Pelo visto até agora, a filosofia de Husserl propunha certo paralelismo entre os dois campos, pois toda pesquisa psicológica empírica parece afirmar uma verdade fenomenológica ou eidética, quer dizer, essencial. No entanto, Husserl nunca supôs uma identidade entre as duas disciplinas, visto que considerava a Psicologia uma ciência empírica, ou seja, baseada na experiência.

Dentre as abordagens psicológicas, a Teoria da Gestalt foi a escola que mais se aproximou dos cânones de Husserl. Composta por antigos alunos do eminente pensador, dedicou-se ao estudo da percepção, buscando estabelecer a ligação entre o âmbito da experimentação com a interpretação fenomenológica. Pode-se considerar que a própria noção de forma se assemelha com a noção de essência em Husserl.

Uma grande restrição que Husserl fazia às escolas de Psicologia constituía-se no fato das mesmas desconsiderarem em variados graus a consciência como a origem dos fenômenos psíquicos. A Psicologia é inegavelmente uma ciência autônoma, com objeto definido de estudo, o comportamento, mas a significação que subjaz à conduta requer uma interpretação. A tarefa de interpretar o sentido, segundo Husserl, era a missão da Fenomenologia, e consistia numa reflexão fenomenológica sobre os fundamentos naturalistas sobre os quais se apóia a psicologia empírica.

Husserl rejeitou a distinção entre ciência descritiva e ciência explicativa, como proposta por Brentano e Dilthey, pois ao realizar a critica das concepções naturalistas da psicologia, enfatizou o conceito de experiência, fruto da vivência do Homem no mundo. A noção de uma Psicologia exata, semelhante à Física constitui um contra-senso para Husserl, pois aquela não necessita da metodologia das ciências da natureza, visto que a psiquè possui essencialidade peculiar, que não se pode comparar àquela do mundo natural. Como vimos, para desvendar como esta psiquè se relaciona com o corpo, necessita-se de um trabalho de interpretação, uma reflexão específica, e isto porque o Homem não seria um mero participante do mundo, mas constitui-se no ponto originário desta mesma reflexão. Esta reflexão surge precisamente de uma intencionalidade do ser humano em relação as outros e às coisas do mundo, local onde atua o sentido que integra, unifica as subjetividades, transmutando-as em realidades que podem ser compartilhadas, e cujo desvelamento é a tarefa da Psicologia. Por isso, a questão do ser e sua condição no contexto social e histórico seria aquilo que complementaria a visão empírica da psicologia descritiva.

Para Husserl, a meta final de uma ciência psicológica seria determinar as estruturas inteligíveis que vão além do meramente observável, do empírico. Neste sentido, a psicologia é a ciência do Homem frente ao mundo, que lida com a compreensão dos padrões de conduta suscitados por contextos específicos. Mas por que, pergunta Husserl, a Psicologia não tem como ponto de início a compreensão do fluxo do mundo vivido? Ele explica que como a psicologia aspira ser uma ciência natural, não parte da natureza mesma como conhecida pela intuição, mas do corpo teórico que a substitui hipoteticamente. René Descartes, ao separar a mente do corpo, determinou também que o ser psíquico quedasse naturalizado. Sem uma ontologia que explicite esta relação homem-no-mundo, a Psicologia torna-se um psicologismo, compartilhando as convicções do senso comum sobre o ser. Assim, parece ser possível afirmar (1) que o conhecimento dos fatos é tarefa da psicologia empírica, (2) a reflexão sobre a significação dos conceitos psicológicos é tarefa de uma psicologia eidética, ou fenomenologia, e (3) o núcleo do método desta fenomenologia seria a redução fenomenológico-psicológica.

Hoje em dia parece subsistir o descompasso que Husserl apontava no século XIX, de um lado, a psicofísica e a pesquisa das condutas, enfatizando o controle, a experimentação, produzindo “dados” e, de outro, a psicologia filosófica e a psicologia clínica, interessadas no ser, na emoção, gerando “abstrações”. O antagonismo entre data e abstracta fica claro quando se observa que se postula ocasionalmente a desvinculação entre psicanálise e psicologia, como se disciplinas antitéticas fossem. O ideal husserliano de unificação da Psicologia enquanto ciência da experiência ainda é um verdadeiro ideal.

A nosso ver, a ligação primordial nestes universos é a linguagem, como ressalta também BURCH (2006) e DUTRA (2002), entre tantos autores. Consideramos que o modo como os objetos se dão ao Homem constitui-se em linguagem, e que não existe experiência humanamente constituída que não seja mediada pela linguagem. A característica abrangente da linguagem implica que ela, enquanto fala sobre o mundo, ou ela, enquanto seja o mundo, também é apanhada enquanto linguagem. Dito de outro modo, afirmo que a relação entre pensamento que visa conhecer algo no mundo e linguagem é uma relação necessária. Isto porque, como vimos, a relação do sujeito que pensa e o objeto pensado deve ter um sentido e, desde que falamos de dentro da linguagem sobre a linguagem (ou seja, não conseguimos nos colocar de fora da linguagem), os objetos terão possibilidade de estar ao alcance do homem se forem expressos como significados. O Homem tem uma concepção do uso da linguagem, e ela se constitui como concepção de acesso ao mundo como totalidade. Estamos envolvidos com os objetos do mundo e descrevemos o mundo no qual se dão os objetos. Situados todos num mundo humano (que é basicamente linguagem), temos que averiguar como se dá a interpretação e a compreensão destes sentidos e significados, tanto no nível pessoal, no nível que respeita aos demais, no nível da(s) nossa(s) mútua(s) relação(ões) e, por fim, como se nos assimilam todas estas experiências em nossos horizontes (DUTRA, 1996; 2003). E assumimos que a Fenomenologia é a ferramenta por excelência para a intelecção do sentido, em especial, quando realizada hermeneuticamente.

Isto posto, e finalizando nossa discussão, vemos que a Fenomenologia por vezes tem sido acusada de privilegiar a psicologia filosófica contra a psicologia experimental, mas Husserl desejava que a Psicologia se desenvolvesse como uma ciência universal, através da noção da experiência intencional, o que nos levaria além das visões que tentam dividi-la em campos opostos e que mutuamente se excluem. Uma dificuldade infelizmente é a existência de diferenças epistemológicas irredutíveis, problematizado pela excessiva especialização e compartimentalização do conhecimento, que afetam todas as ciências, e a Psicologia em particular. Creio que hoje, ao contrário do que se poderia esperar, o saber, em vez de completar lacunas e se articular, fornecendo um panorama mais claro do que constitui o Homem e seu mundo, parece servir mais para ser acumulado em cátedras que não se comunicam, falando linguagens cada vez mais herméticas (veja-se, a propósito, interessante artigo de CHAVES, 2000), como que inacessíveis tanto aos estudiosos quanto aos estudantes...

        Penso que devemos batalhar para que o esforço de diálogo interdisciplinar em seus diversos níveis e matizes se fortaleça cada vez mais, coordenando e coadunando diversas fontes do saber, que possam recolocar as questões fundamentais para a Ciência, para a Psicologia e para a Fenomenologia, pois as perguntas formuladas por Morin ainda ecoam: “O que é o Homem? O que é o Mundo? O que é o Homem no Mundo?”


REFERÊNCIAS

BURCH, R. Phenomenology, Lived Experience: Taking a Measure of the Topic. Phenomenology + Pedagogy, Vol. 08, p.130-160. Obtido de http://www. phenomenologyonline.com/articles/burch2.html, baixado em 22/12/08 17:35.

CHAVES, A. M. O fenômeno psicológico como objeto de estudo transdisciplinar. Psicologia: Reflexão e Critica (Porto Alegre, RS), Vol. 13, n.1, 2000. (Obtido de SciELO)

COLMAN, A. M. A Dictionary of Psychology. New York: Oxford University Press, 2003.
DUTRA, E. A narrativa como uma técnica de pesquisa fenomenológica. Estudos de Psicologia (Natal, RN), vol.7, no.2, Julho/Dezembro, 2002. (obtido na SciELO)
DUTRA, L. V. O Dualismo Mente-Corpo: implicações para a prática da atividade física. Dissertação (Mestrado) - Instituto de Biociências. Programa de Pós-Graduação em Ciências da Motricidade. Rio Claro (SP): UNESP, 1996.

DUTRA, L. V. Um estudo psicológico-hermenêutico da conversão religiosa. Tese (Doutorado) – Centro de Ciências da Vida. Programa de Pós-Graduação em Psicologia, Ciência e Profissão. Campinas (SP): PUC-Campinas, 2003.

FERREIRA, A. B. de H. Novo Dicionário da Língua Portuguesa. 2a ed. rev. aum. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1986.

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(*) Husserl afirmou no seu Idéias para uma Pura Fenomenologia e Filosofia Fenomenológica (Ideen zu einer reinen Phänomenologie und phänomenologischen Philosophie, de 1913) “nós somos os verdadeiros positivistas”.