A V I S O


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terça-feira, 16 de fevereiro de 2010

Introdução da minha Tese de Doutorado

Resolvi, a pedidos, colocar minha Tese aqui no meu Blog. De que adianta mante-la 'escondida', não é mesmo? Na verdade, tal conhecimento não me pertence e, depois que superei todas as dificuldades, parece que "não preciso provar mais nada pra ninguém"... 


 

INTRODUÇÃO


...nosso conhecimento do mundo apresenta-se como um texto infinito, que aprendemos a recitar com dificuldades e fragmentariamente.      H-G GADAMER, V&M II, p. 242.


         Acredito que se pode compreender, em grande medida, o que constitui o ser de uma pessoa observando os seus momentos ‘marcantes’. Se me fosse perguntado o que acredito ser marcante em minha vida, diria que foi, de um lado, a atmosfera religiosa sempre presente em minha família e, de outro, o estímulo parental para o auto-desenvolvimento, notadamente o intelectual. Assim, a coleção destas vivências determinaram como vejo, no plano pessoal, a propositura do tema a ser trabalhado. De um lado, meu percurso religioso e, de outro, o projeto intelectual que me propus percorrer, corporificado no meu treinamento acadêmico formal, e desembocando na escolha da atual carreira profissional como docente de ensino superior e psicoterapeuta.

         Minha formação religiosa foi oriunda da tradição Católica apostólica romana, com pais atuantes, conscientizados. Não obstante, na idade adulta experimentei em 1984 uma conversão à Igreja de Jesus Cristo dos Santos dos Últimos Dias, (movimento conhecido como Mormonismo), em Campo Grande, capital do Mato Grosso do Sul. Posteriormente, de volta a Rio Claro, onde resido, experimentei uma conversão ao Zen Budismo, na escola Soto em 1995, tendo realizado a cerimônia de votos leigos no templo Bushingi Zen Sotoshu, em São Paulo, no bairro da Liberdade, sob a orientação do Abade à época, Reverendo Moryiama Roshi.

         Profissionalmente, sempre almejei a docência, realizando diversos estudos pós-graduados (lato sensu) após a formação em Psicologia, pela PUC-Campinas, em 1977. Estas atividades foram posteriormente completadas na elaboração da dissertação de Mestrado, tendo como tema a análise do problema da relação Mente-Corpo, envolvendo a crítica de Gilbert Ryle ao dualismo cartesiano. A abordagem empregada neste estudo foi a da Análise da Linguagem, campo de especial predileção.

         Ampliando meu interesse nas relações entre corpo e mente, decidi averiguar, nos estudos no programa de Doutorado, determinados aspectos da experiência mental (marcadamente lingüística) intimamente associada com alterações corpóreas, como no caso da mudança cognitiva significativa no contexto da vivência religiosa. Dentre a miríade de assuntos possíveis, elegi como objeto de estudo o processo da conversão religiosa.

         Pensando no aspecto social da propositura desta investigação, justificamo-la inicialmente pelo fato de que ‘o Homem é, desde o começo, um ser de necessidades’ (CATALAN, 1999, p. 65) e que, das suas carências, a dimensão da religiosidade ocupa espaço primordial. O homem é um ser incompleto, e nada parece satisfazer totalmente o homem neste mundo; chega-se a afirmar que “O homem é um ser insatisfeito” (CALLIOLI, 2001). Este autor diz que mesmo quando se atinge determinado objetivo parece faltar algo; após um momento de gozo, acaba-se por sentir uma “pontada de frustração”. Desde o descortinar da humanidade, o existir condiciona, a todos, a convivência com desafios e obstáculos que, pelo seu grande número, mais impregna nos viventes a posse de sentimentos ditos ‘negativos’ do que o contrário (SQUEFF, 2001). Mesmo antigamente o antes príncipe Sidartha Gautama, agora Iluminado, identificou, em sua prática, que o apego às coisas do mundo determina a tristeza, infelicidade ao ser humano. O homem despende grande parte de sua atividade buscando minorar a influência e coexistência com o mal e acercar-se do que considera um bem, de modo a ser feliz. Assim, a felicidade parece constituir a meta fundamental do ser humano. Todas as pessoas, em algum momento de suas vidas, questionam sobre o melhor caminho para adquirir e manter este estado ou condição, que se espraia, tanto no plano material, quanto no que tange às vivências privadas, denominado por muitos (ainda que os termos não sejam sinônimos) como a ‘vida espiritual’.  MORRA (1998, p. 40) afirma, sob Dilthey que, historicamente, a “religião (...) é uma ‘concepção do mundo’, ou seja, um conjunto coerente de sentimentos e idéias sobre o sentido e o valor da vida”.

         Dentre as várias alternativas possíveis para alcançar a felicidade, o caminho de indagar pelo transcendente, complementando ou não a experiência humana do numinoso, é a senda escolhida pela maioria, em todas as épocas e culturas. Com a evolução da humanidade, em especial na tradição ocidental, estes caminhos acabam muitas vezes sendo identificados ou assimilados com a religiosidade. O senso religioso parece ser intrínseco à condição do Homem no mundo, como uma natural destinação, o que pode ser corroborado pelos estudos antropológicos e históricos, em nível mundial, nas várias dimensões das experiências humanas, multifacetadas e heterogêneas (SCHNITMAN, 1989), e suas relações. Em especial nas artes, o vasto e multidimensional produto cultural de uma coletividade, a idéia da espiritualidade é recorrente. Por exemplo, VASCONCELOS (1999) comentando dois documentários brasileiros [1] sobre religião (‘Fé’ e ‘Santo Forte’) em cartaz à época, expressa que

A religião talvez seja a coisa mais importante que existe na sociedade. Religião vem de ‘religare’, aquilo que liga a comunidade, a tribo, o país. O cimento espiritual da cultura é a religião, de modo que pode ser tanto o ópio do povo quanto a vitamina para fraco. Depende de como funciona a fé em uma determinada sociedade. No caso do Brasil, os melhores cientistas e artistas são pessoas que se dedicam a refletir sobre a particularidade do nosso sentimento religioso (p. 4-14).

         As organizações sociais, a grande expressão moderna da sociabilização do homem (em especial as corporações que visam lucro), também se valem de considerações sobre religiosidade, tanto para decisões de negócios e gerenciamento de empresas (COHEN, 1998, 2002) como para questionar a relação mais ampla entre vida religiosa e prosperidade (BARRO, 2001; SANTOS, 2001). A vida profissional do trabalhador também pode ser fortalecida com a religiosidade (SILVA, 1999; BARELLI, 2001). Em especial pela importância da informática nos dias de hoje, as revistas e jornais empresariais abrem espaço para considerações assemelhadas (ESCOBARI, 2001; GILDER, 2000). Até o quesito Fé está na internet, com as igrejas ampliando “serviços interativos para consolidar seu rebanho cibernético” (PEREIRA, 2003). (Observe-se que a enorme profusão do assunto religião na mídia de grande circulação – notadamente revistas e jornais - reflete a importância do tema nas cogitações contemporâneas do cidadão comum).

         Inegavelmente, o último evento mundial que reforçou a importância da reflexão sobre a religiosidade nas micro e macro relações humanas foi o atentado terrorista nos Estados Unidos em 11 de setembro de 2001. A princípio designada como um estúpido ato político praticado por um grupo suicida (MERARI, 2001), rapidamente assumiu, para uma parcela da opinião pública, contornos de ‘guerra religiosa’ entre ocidente cristão e oriente muçulmano (CARVALHO, 2001). Os muçulmanos são divisados como pertencentes a uma religião com contornos ‘fanáticos’, onde os convertidos não titubeiam em imolar-se pela causa de Alá.  Ao que parece esta aproximação foi facilitada pela ainda recente lembrança do conflito nos Bálcãs, considerado mormente também como de fundo religioso (SONTAG, 1999), onde muçulmanos e cristãos foram envolvidos. Em 23 de setembro de 2001 o jornal Folha de São Paulo publica o caderno especial ‘Todos os mundos do Islã’, com doze páginas de reflexões intentando contribuir com a discussão sobre as relações entre as grandes religiões, em geral, e sobre o islamismo e sua vertente fundamentalista, em particular. O debate sobre este tema foi estimulado no mundo todo por um sem- número de congressos, seminários e por copiosa contribuição dos mais variados estudiosos, publicados principalmente nos meios de comunicação de massa (DAMATTA, 2001; LLOSA, 2001; SULLIVAN, 2001; JOHNSON, 2001; PINTO & MUNCINI, 2002; SARAMAGO, 2001; TOFFLER & TOFFLER, 2001, 2002; RUSHDIE, 2001, v. também 2002; ECO, 2001a, 2001b; HABERMAS, 2002, 2003). Um interessante resultado (que poderá influenciar a discussão da relação entre política e religião) foi que, após décadas de certo silêncio, os americanos retomam a discussão de princípios religiosos e morais como questões de Estado (LEE, 2002).

         No Brasil, pela própria origem, inclusive, o fenômeno religioso sempre esteve presente no considerar e fazer humanos. Um dos modos que se pode dimensionar atualmente esta prevalência é pelo espaço a ele destinado na mídia em geral, especialmente a impressa. Recentemente, a julgar pelas reportagens, o brasileiro tem se posicionado muito mais sobre religião (ver p. ex., ARRUDA, 2000, 2002; SOUSA, 2001).  Já para EDWARD (2002), muita desta constatação se deve ao crescimento, em décadas recentes, da fé evangélica (em oposição à fé até então marcadamente católica), determinando mudanças na ‘paisagem’ do Brasil neste âmbito: alterações extensas no tecido social que vai dos “esportes à política, das favelas aos bairros chiques, dos presídios à televisão” (p. 89). Algumas reportagens identificam até um certo caráter mercantilista que parece ter dominado a enorme expansão de ‘religiões’ que se verifica atualmente (SHEA, 2001; RIBEIRO, 2001). O jornal diário Folha de São Paulo destinou um caderno especial (ANO 2000 – BUSCA PELA FÉ, 1999) para ilustrar os grandes temas subjacentes às grandes correntes de pensamento, religiões e seitas na contemporaneidade e seus reflexos no Brasil.  VEJA, a maior revista semanal de variedades da América do Sul, tem sistematicamente dedicado espaço a temas religiosos. O número que saiu no dia de Natal de 2002 dedicou ampla matéria (27 paginas de texto, de um total de 134 de texto e publicidade) ao maior ícone do cristianismo nacional, a figura de Jesus (BOSCOV, 2002). O brasileiro, principalmente pelos desafios e condicionantes histórico-político e econômico, parece estar buscando na religiosidade muitas respostas para a sua condição. Pelas dificuldades a que está submetido, indaga pelo auxílio da divindade para encontrar um modo de ser feliz, posto que a razão muitas vezes não propicia o encontro das respostas adequadas (ANGELI, 2002, p. 130).  A Academia acompanha questionamentos neste sentido, havendo enorme fluxo de publicações sobre a temática, de elevada qualidade (CAPRA, STEINDL-RAST & MATUS, 1991; DERRIDA & VATTIMO 2000).

         Um exemplo recente desta abertura do brasileiro para com a temática religiosa (ou pelo menos do fascínio pelo misterioso) manifestou-se com o fenômeno da ‘santa da janela’. Em diversas residências da Grande São Paulo surgiram imagens de Nossa Senhora ou manchas, conforme a fé do observador, após a notícia do surgimento de uma ‘aparição’ na vidraça de uma residência em Ferraz de Vasconcelos (GARBIN, 2002). Mais de 190 mil pessoas visitaram esta residência em um espaço de 15 dias (MUG, 2002). Mesmo após uma comissão científica altamente especialista ter divulgado laudo pericial demonstrando que a imagem se devia a uma espécie de ataque químico do vidro tipo soda-cal-sílica (ZANOTTO, 2002, p. 14) resultando visível, pelo reflexo iridescente, em figuras geométricas arredondadas (e mesmo também o fato ter sido explicado ao povo pelo pároco da igreja católica local como um fenômeno natural), os fiéis devotos continuaram com a peregrinação ao local por um bom tempo. Atualmente, ao que parece, não se noticia mais nos jornais esta ocorrência.

         Dentre o universo das expressões da religiosidade, pela sua dimensão popular, é bastante encontradiço no Brasil o messianismo e o milenarismo, fenômenos por vezes imbricados ou até fundidos (NEGRÃO, 2001). Destas expressões, as mais conhecidas foram os de “O Reino Encantado”, transcorrido de 1836 a 1838 em Pernambuco, com sacrifício humano e morte violenta dos adeptos; o do “Povo do Velho Pedro”, na década de 40 no interior da Bahia; a “Guerra Santa” do Contestado, de 1912 a 1916 em Santa Catarina, e o movimento de Canudos na Bahia, de 1893 a 1897. Mais recentemente surgiram os movimentos do “Demônio no Catulé”, dos Adventistas da Promessa, ocorrido num grotão de Minas Gerais; o do “Exército da Salvação”, organizado por Aparecido Galdino, o “Aparecidão” na década de 60 no interior paulista; a “Fraternidade Eclética Espiritualista Universal”, conduzida por Yokaanam no Rio de Janeiro em fins da década de 40; o movimento ufologista/terrorista de Aladino Félix, de São Paulo (década de 60), e o movimento denominado “Borboletas Azuis”, de Campina Grande na Paraíba, liderado por Roldão Mangueira e bastante noticiado na década de 70.

         Pelos poucos aspectos evidenciados anteriormente pode-se aquilatar a ampla importância que o assunto religiosidade assume no entendimento das vivências humanas e suas polissêmicas expressões. No caso do Brasil este interesse tem sido evidenciado pela presença da temática em inúmeros espaços da vida em comum, em quase todas as dimensões sociais, sendo muitas vezes opção preferencial para a corporificação do existenciar das pessoas (existenciar no sentido que utiliza FIORI, 1967, 1978, p. 10, 15, como sendo o modo de ser do Homem: pela palavra — que significa palavra e ação — intersubjetivada). No âmbito acadêmico, cremos que a pesquisa sobre a expressão psicológica da religiosidade pode fornecer elementos importantes para várias áreas do conhecimento e, pela sua abrangência multifuncional, pode contribuir efetivamente para esclarecer a formação e a manutenção do que constitua precisamente a dimensão religiosa da brasilidade.

         Sob o aspecto científico, justifico a propositura desta Tese no sentido que a Academia tem sido mais e mais interpelada a se pronunciar sobre a vital temática da religiosidade. Após muitos anos da separação demarcada entre os domínios científico-acadêmico e religioso, observo — principalmente nas décadas recentes — (certamente um sinal de maturidade e humildade intelectual dos interlocutores de parte a parte) um decidido movimento de aproximação das respectivas agendas. Entre tantos estudiosos e enfoques, este fato foi refletido por MORAIS (1975) que identificou a educação como o elo de ligação entre estes dois campos. Mais recentemente tivemos publicado entre nós dois exemplos desta iniciativa de diálogo, ainda que oriundos de tradições diversas e com objetivos distintos. Um, ‘Em que crêem os que não crêem?’ (ECO & MARTINI, 1999; v. também a resenha de GRECO, 2000), resultado da aproximação promovida pela revista italiana Liberal, onde os autores trocaram correspondência durante um ano visando encontrar pontos comuns entre o mundo laico e o mundo cristão. Nesta obra averiguo que, apesar de o mistério e a evidência serem ambos e mutuamente de acesso difícil, o diálogo tem que existir. A outra obra é ‘Pilares do tempo’ (GOULD, 2002; ver também a resenha de LOPES, 2002). Nesta obra, o autor defende a dialogicidade entre o que ele denomina MNI (Magistérios Não-Interferentes), representados pelos campos da Ciência e da Religião, como indispensável para a plenitude e a sabedoria do caminhar humano.

         Sob o manto do diálogo necessário que deve presidir as relações entre Ciência e Religião, além da educação, como apontei, mas em outra direção, considero também que a Psicologia se constitui como interlocutor natural entre estes domínios. Ela dispõe efetivamente de ferramental intelectual e de instrumentos específicos para favorecer esta aproximação (VERGOTE, 2001; SPILKA et al, 1996; BLANCO-BELEDO, 1998), inclusive no plano clínico e da saúde mental (SHAFRANSKE, Introduction, 1996, p. 2 e 3). Existe efetivamente uma necessidade em legitimar a “linguagem religiosa em face da Psicologia” (AMATUZZI, 2003, p. 62). Mas esta mediação da Psicologia não se processou de modo plenamente consensual, ainda que guarde enorme potencial de contribuição (ANCONA-LOPEZ, 2001; 2002).

         Conforme WULFF (1996, p. 45), desde seus primórdios a atividade da Psicologia da Religião tem sido marcada pela atuação em dois campos principais, um descritivo e outro explanatório. O descritivo preocupa-se em documentar as variedades e os tipos de experiência religiosa, com a idade ou o estágio da vida comumentemente servindo como variável significante. O explanatório visa investigar a origem das experiências e práticas religiosas não no campo do transcendental, mas no espaço mundano dos eventos ambientais, biológicos e psicológicos. Com estas agendas radicalmente divergentes, os psicólogos da religião (atentos a diferentes aspectos do fenômeno religioso) concebem a religião em termos bastante contrastantes. Por um lado, o que parece existir é um fenômeno amplo, complexo, que se reflete na dificuldade na sua abordagem e, conseqüentemente, na sua adequada conceituação. Por outro lado, o próprio entendimento do que seja Psicologia, não bastasse já toda a sua pluralidade e multidimensionalidade (“Na verdade, não existe uma psicologia, mas psicologias” – CATALAN, 1999 p. 9), obteve nos últimos decênios uma sensível alteração (PAIVA, 1999, p. 11).

         No nível mundial, a Psicologia da Religião teve origem independente na Europa e nos Estados Unidos (PAIVA, 1999, p. 10), estagnando-se no período das Grandes Guerras. Atualmente constitui área de investigação bastante atuante, discutindo diversos e polifacetados temas. No Brasil, o interesse geral dos profissionais psicólogos na Psicologia da Religião é pequeno, em comparação com os demais sub-campos, apesar de se espraiar em diversos aspectos da religiosidade. Em particular, por exemplo, os estudos mais recentes sobre um dos seus fenômenos mais visíveis, a conversão religiosa, referem-se em grande parte à adesão de brasileiros às novas religiões ou a religiões orientais (ver p. ex. o n. 2, do ano 2002, da revista REVER – http//www.pucsp.br/rever; PAIVA, 1996, 1999a). De minha parte, concordo com HEFNER (1997, p. 157) quando afirma que ‘a Psicologia está no coração da interface entre religião e ciência’.

         Não obstante existirem estudos sobre o senso religioso em geral e a conversão religiosa em particular, em diferentes tradições e escolas de pensamento, elas refletem as dificuldades apontadas acima, ainda que, por muito tempo, a conversão tenha fascinado teólogos, sociólogos e psicólogos (PARGAMENT, 1996, p. 227). Por outro lado, ainda que constitua campo controverso e complexo, concordo com BARNHART & BARNHART (1981, Introduction, p. 01) de que se pode estudar objetivamente a religião requerendo, entre outros aspectos, que se tenha uma mente aberta, receptiva. Adicionalmente desconhece-se, em nosso meio, estudos sistemáticos em domínios importantes como p. ex., sobre a conversão religiosa no âmbito de instituições religiosas milenaristas, tal como A Igreja de Jesus Cristo dos Santos dos Últimos Dias (Igreja Mórmon). É muito escassa a literatura sobre a Psicologia da conversão religiosa nesta organização visto que, entre outros aspectos, o acesso ao material eclesiástico é dificultado a pesquisadores em geral.

         No tocante aos objetivos desta inquirição pretendi, em primeiro lugar, realizar a descoberta da própria Hermenêutica, enquanto aplicada à análise da conversão religiosa. Eu tinha um conhecimento quase que superficial desta importante área de investigação, antes de iniciar meu Doutorado. Em segundo lugar, esta pesquisa visou aumentar os horizontes de compreensão da natureza do processo psicológico da conversão, realizado mediante o estudo hermenêutico de um depoimento concreto, uma narrativa escrita. Trabalhar com narrativas exibe elevado potencial de análise para as ciências humanas em geral e para a Psicologia em particular, visto que “... envolve o estudo de como o homem vivencia e significa o próprio mundo, a própria vida” (VIEIRA, 2001) e abrem “novas possibilidades de interpretações” (SILVA, 2002). Para auxiliar no entendimento e aplicação da análise hermenêutica, realizei também a análise do depoimento de Paulo Setúbal segundo os estágios de conversão de RAMBO (1993), objetivando cotejar as abordagens de análise. Assim, neste segundo objetivo de trabalho, averigüei imbricamentos e também pontos de convergência e divergência nos dois tipos de compreensões obtidas da conversão de Paulo Setúbal: (a) analisada hermeneuticamente, e (b) analisado a partir do modelo explanado em RAMBO (1993). Por fim, como terceiro objetivo, visei aumentar os horizontes de compreensão da  aplicação da abordagem hermenêutica à psicologia da conversão religiosa.

         Sobre o depoimento estudado, realizei o estudo hermenêutico de uma narrativa de conversão extraída de um clássico da literatura brasileira, o livro Confiteor (do latim, ‘eu confesso’ - SETÚBAL, 1938), escrito pelo ensaísta e contista Paulo Setúbal, membro das Academias Paulista e Brasileira de Letras, uma pessoa pertencente à tradição Católica Apostólica Romana. Este texto revela com riqueza de detalhes descrições de experiências de conversão religiosa (Ver o ANEXO, com a numeração das linhas do depoimento).

Quanto aos procedimentos, executei leitura minuciosa da narrativa, diversas vezes. O depoimento elegido para estudo efetivamente possui manifesta densidade experiencial. Foi elaborada a unidade de sentido da vivência (um contexto de sentido - Sinnzusammenhang), a partir da abordagem hermenêutica, mediante a aplicação do círculo hermenêutico. Entre outras atividades inerentes desta postura qualitativa-intepretativa identificam-se, p. ex. os elementos experienciais presentes no depoimento, explicitam-se as condições de preparação das vivências e sua articulação, evidenciam-se os desdobramentos identificados no depoimento. Como decorrência, obtive a ampliação do horizonte de compreensão, a partir da situação hermenêutica e da conjunção hermenêutica das análises procedidas.

         Acredito que esta investigação, discutindo a lingüisticidade e o caráter discursivo inerente ao processo de conversão religiosa, traz para o conhecimento científico nesta área uma nova abordagem de análise, constituindo especial interesse para a Psicologia da conversão (AMATUZZI, 2003, p. 70; v. também ALMEIDA, 2001).

         A tese está dividida em quatro Capítulos. No primeiro, é apresentada a abordagem da Hermenêutica sob o enfoque do filósofo alemão Hans-Georg Gadamer, nascido em 1900 e falecido no ano passado. Esta aproximação consiste basicamente na execução do círculo hermenêutico, onde as partes de um texto são analisadas com relação à totalidade que as determina. Este primeiro capítulo possui 5 seções. Na primeira, trago ao debate certos aspectos concernentes ao que compõe a natureza humana. Na segunda seção, discuto uma característica humana fundamental, a linguagem, que se constitui como via de acesso primordial à experiência. Na terceira seção, apresento algumas escolas que pretendem alcançar o fenômeno da linguagem, antecedendo a quarta seção, onde descrevo a solução hermenêutica para a compreensão da vivência, expressa na linguagem. Na quinta seção discuto os procedimentos pertencentes à abordagem hermenêutica, na visão de Hans-Georg Gadamer.

No segundo capítulo, temos a fixação do conceito do fenômeno da conversão religiosa, através de cinco seções. Na primeira, temos algumas generalidades sobre o tema da conversão, além do essencial sobre este tema a partir do livro precursor do psicólogo William James As variedades da experiência religiosa (uma das principais referências sobre a experiência religiosa no campo da Psicologia). Na segunda seção, apresento outras idéias a partir de alguns estudos contemporâneos sobre a temática. Na terceira seção, inicio a discussão da natureza do fenômeno da conversão, apresentando em seguida, na quarta e quinta seções, o Modelo de Conversão religiosa por Estágios, do psicólogo americano Lewis Ray Rambo.

No terceiro capítulo é realizada a análise hermenêutica de um depoimento publicado postumamente, o relato da conversão do escritor supracitado. Este capítulo está dividido em 3 seções. Na primeira, introduzo a discussão percorrendo a cronologia básica do texto originário, com a sua ‘linha-mestra’. Em seguida, apresento a análise hermenêutica realizada do depoimento, extraindo a unidade do sentido da vivência de Paulo Setúbal em sua conversão (também denominado, como disse, o contexto de sentido – Sinnzusammenhang). Na última seção, explano sobre a minha vivência ao trabalhar hermeneuticamente com o magistral texto.

No quarto capítulo realizamos a análise e discussão dos resultados, intentando realizar os objetivos da tese – basicamente aumentar os horizontes de compreensão da aplicabilidade da abordagem hermenêutica na análise psicológica de depoimentos de conversão. Esta parte está estruturada em quatro seções; na primeira, faço um resumo de minhas observações e reflexões sobre a compreensão (auferidas em minha pesquisas sobre hermenêutica e na análise do texto de Paulo Setúbal), ressaltando sua importância dentro do fazer hermenêutico sob Gadamer. Na segunda seção, a partir do mesmo relato do processo de conversão religiosa do autor citado, encontrado em seu livro Confiteor, realizo a análise sob o modelo de estágios de conversão religiosa de Lewis R. Rambo.

Na terceira seção, analiso e discuto os imbricamentos e convergências das interpretações realizadas (hermenêutica e descritiva-empiricista de cunho desenvolvimentista), tecendo observações sobre o processo de conversão de Paulo Setúbal e sobre o processo de conversão em si. Afirmo ali, à luz das reflexões de Gadamer, que a vivência e a Personalidade exercem papel importante na compreensão do fenômeno da conversão, aspectos não muito encontradiços em muitas teorizações sobre a mesma. Na última seção, apresento algumas intelecções de nossa investigação para a práxis hermenêutica na Psicologia da conversão religiosa.

[1] Ver também o comentário de Marcelo Coelho (Folha de São Paulo, Cad. Ilustrada de 18 abril 2001, p. E 8)  sobre o documentário “O Chamado de Deus”, do diretor  José Joffily.