A V I S O


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terça-feira, 16 de fevereiro de 2010

Capítulo III da Tese


Capítulo III – Análise de um relato de Conversão


   ...o ser é linguagem, isto é, representar-se...
                            H-G GADAMER, V&M, p. 703


         Há muito tempo o Homem costuma criar e tornar perene uma representação externa, pública, um retrato da sua vida interior, enfim, o que pensa e sente. Inicialmente ideava pictograficamente, depois conseguiu com os fonemas e palavras, comunicar mais e melhor. Mas mesmo hoje, não obstante estarmos tão avançados tecnologicamente, persiste a grande distância entre o que pretendemos e o que efetivamente realizamos em nossa pretensão de comunicar. Ainda que muitos escritores e poetas tangenciem com as palavras o que vai pelo espírito, a pessoa comum tem muito a aprender para bem comunicar com os demais e, principalmente, consigo mesmo (e o que se dirá da comunicação com a Deidade). São muitos os níveis e modos onde a vida interior pode ser representada, em especial pelos depoimentos, orais ou transcritos (as narrativas). Atualmente, o texto escrito tem grande importância neste cenário da comunicação, em especial quando o conteúdo abrange o transcendental e mesmo a religiosidade. Mas permanece a dificuldade em criar um bom texto e, por extensão (mas não só por causa disso), também a dificuldade em compreender textos (e as pessoas...).

         Mesmo que se trate de um texto oriundo de um literato como Paulo Setúbal – mormente um texto melhor estruturado e acabado, com as palavras precisamente escolhidas – ainda assim o mesmo traz desafios que requerem a assistência de uma ‘metodologia’ que permita extrair adequadamente os sentidos que contém, ou seja, realizar a sua compreensão - e mais, se o texto contiver densidade vivencial que demande atenta prudência (e eu diria, humildade) na sua abordagem.

Quem trabalha com a construção de textos sabe algo das exigências desta ampla atividade. O trabalho ‘textual’ é uma busca para um dizer que pretende apreender e explicitar os conteúdos, seus limites e razões, e os significados da interioridade do escritor, mas não necessariamente uma interioridade ‘universal’ que se pressupõe todas as pessoas possuírem – algo que todos teriam na cabeça, no consciente (ou mesmo no inconsciente). Esta interioridade almejada pode se constituir precisamente numa interioridade especial enquanto ser-que-se-diz, uma interioridade que se constitui enquanto possibilidade de diálogo, um dizer que pretende assumir um dizer-com-o-outro. Neste sentido a hermenêutica pode, como vimos, ser utilizada para aproximar-se destas falas, e viabilizar o diálogo, posto que se trata de um ‘aprendizado de texto’, uma verdadeira aprendizagem do ser que se anuncia.

         Neste capítulo aplicarei a abordagem hermenêutica na análise de um texto que traz um denso e candente depoimento de uma vivência de conversão (SETÚBAL, 1938), na intenção de realizar a sua compreensão. Ele está dividido em 3 seções. Inicialmente introduzirei a discussão apresentando uma cronologia básica do texto originário, com a sua ‘linha-mestra’. Lembro novamente ao leitor que será interessante dirigir-se antes ao ANEXO para ler, na íntegra, a bibliografia e o texto objeto de análise, antes de examinar este Capítulo (em minhas análises indicarei as linhas do texto conforme consta na transcrição, de modo a identificar as passagens respectivas). Em seguida apresento a análise hermenêutica realizada do depoimento. Encerro este Capítulo explanando sobre a minha vivência ao trabalhar com o texto de Paulo Setúbal, na última seção.


Cronologia do texto ‘Confiteor’

         O livro de memórias póstumo Confiteor está composto de 19 capítulos (sem títulos), dispostos numa ordem que não observa a cronologia dos fatos que ocorreram com Paulo Setúbal em sua experiência de conversão. Dado o projeto de texto do escritor, os acontecimentos são vistos muitas vezes retrospectivamente, de modo a facilitar a transmissão da mensagem. O Capítulo I, escrito nos dias 25 e 26 de outubro de 1936 (a pouco mais de 6 meses da sua morte – que ele explicitamente antecipa) contém a preparação do leitor para o que vai se seguir nos próximos capítulos, e o convite para que sua mensagem seja examinada em sua verdade. Apesar de ser o primeiro capítulo, foi escrito de modo inspirado no dia seguinte ao clímax do processo conversão do escritor, e fornece uma espécie de sinopse da sua ampla e densa vivência.

         O Capítulo II, escrito em outubro e em 26 de dezembro de 1936, traz o arrebatado depoimento de como foi o clímax do processo de conversão – o diálogo com a sua filha adoentada no dia 24 de outubro de 1936, um sábado. E descreve cenas do seu último Natal, quando selou o ‘negócio’ que sua amada filha candidamente havia lhe proposto.

         O Capítulo III foi escrito no dia 27 de dezembro de 1936, ainda sob as emoções das festas natalinas, a última de sua vida. Ali, Paulo Setúbal justifica para a filha a significação da ‘pouca de cinza’ que a mesma recebeu de presente, ilustrando e selando a transformação pela qual ele passou. Para isso nosso escritor lança mão da história de Nicodemus, do Novo Testamento, explicando a razão pela qual ele, Paulo Setúbal, se considerava mesmo o homem velho da parábola do Evangelho.

         O capítulo IV, escrito em novembro de 1936, traz o questionamento de Paulo Setúbal sobre as suas experiências, que ele credita (de modo nem tão convicto) ter sido de conversão. Ele desafia o leitor, à luz de seu depoimento, a realizar um exame de consciência para investigar sua vida espiritual, assim como ele o fez. E nosso autor ali se propõe, nos capítulos seguintes, a percorrer na memória as razões pela qual ele, cristão de formação, não era, segundo suas palavras, um convertido ao cristianismo (linhas 651 e 652).

         Do Capítulo V ao XVIII, escritos entre novembro e fevereiro de 1937 (em abril sua saúde piora e falece em começo de maio), Paulo Setúbal alinhava diversas experiências onde descreve e comenta sua formação, empregos, estudo, amigos personagens marcantes, viagens que empreendeu (inclusive o período de repouso de 2 anos em Lajes, estado de Santa Catarina), comenta lições da Bíblia, sua relações com dinheiro, mulheres e jogatina, seus arrependimentos e retratações da vida mundana de outrora, e sua atuação como advogado. Relata em varias passagens a pessoa aquinhoada que foi pelo destino, e que tal fortuna não o fez próximo de Deus como deveria.

         O último Capítulo, o XIX, foi escrito provavelmente antes do fim de abril de 1937, e denota a sua decepção com a Advocacia. Revela que tal profissão o fez ‘rentear muito de perto o abismo, o mais perigoso de sua vida’ (linha 734), e que só não sucumbiu graças à mãe dele, viúva, que com suas orações fez com que Deus tivesse piedade dele. Deus mandou a ele um anjo – que tocou e reformou seu coração empedrado e conspurcado - através da sua filha, para lhe ajudar a vencer o homem velho que ainda vivia dentro dele.

Análise hermenêutica da narrativa


O investigador, quando se propõe a analisar hermeneuticamente um texto, deve considerar que o primeiro elemento com que se inicia a compreensão é o fato de que algo o interpela, interroga-o com veemência. Como vimos, é a primeira de todas as condições hermenêuticas, ensina Gadamer. Este texto de Paulo Setúbal seguramente pode ser considerado um texto que interpela o leitor. A cada vez que se lê, descobre-se algo ‘novo’, mas não se pode deixar de admirar o apelo para a mensagem que subjaz seu discurso. O brilho das palavras que utiliza revela a energia e o testemunho de vida com o qual escreveu seu depoimento. Paulo Setúbal deseja deixar uma marca, uma sólida impressão naquele que lê seu texto. Seu texto realmente impressiona – ele escreveu com real sentimento, de modo a ilustrar as suas vivências.

No primeiro contato com o texto, projetei superficialmente um sentido de totalidade, do todo do texto, visto que ali se mostra um primeiro sentido – à primeira vista o autor deseja somente testificar de sua conversão. Esse primeiro sentido se revelou visto que eu efetivamente abordei o texto com certa expectativa, na perspectiva de um sentido informado pelas próprias circunstâncias – o livro póstumo, as informações iniciais que o livro contém – em especial o prefácio -, e os relatos biográficos do autor.

Li o texto várias vezes, sem o desejo concreto de avistar uma ‘mensagem’ de pronto, ‘uma moral da história’ – sabia que a leitura efetiva iria comportar vários ‘diálogos’ com o relato, posto que denso e oriundo de uma pessoa diferenciada. Eu obtive o texto por indicação de uma professora, assim que ela soube do meu desejo de estudar relatos de conversão, mas ela não proferiu nenhuma interpretação ou recomendação especial em sua sugestão. Portanto, intentei proceder a uma suspensão inicial dos meus preconceitos, no sentido gadameriano, ao iniciar as leituras. Sabemos que toda suspensão de juízos, começando pelos preconceitos, logicamente falando, possui a estrutura da pergunta. Assim, mantive meu espírito atento à(s) resposta(s) que este texto configurava e, como afirma Gadamer, a essência da pergunta é colocar possibilidades e as manter em aberto.

Meus preconceitos (pré-juízos, na hermenêutica de Gadamer) se postaram paulatinamente com as afirmativas do texto, confrontaram-se, efetivamente dialogaram, conforme relato adiante.

Consoante estas considerações iniciais, vejamos os projetos que vi no texto de nosso autor.  A compreensão daquilo que contém o texto consiste, segundo Gadamer, na elaboração desses projetos, ocorrendo, durante a análise, uma constante revisão à medida que aprofunda e amplia o sentido do texto.

Paulo Setúbal revela quatro ‘projetos’ em seu texto. Primeiramente ele pretende, como o nome diz o nome do livro, confessar sua vida pregressa e explanar a sua vida nova (linhas 25 a 28: ...um caderno das minhas notas intimas, notas vividas, notas humanas, as quais pudessem um dia (quem sabe?) vir com proveito a lume. Vir a lume como uma espécie de confiteor. Confissão publica. Confissão da minha vida passada e da minha vida nova). Ele vai escrever para si e para a posteridade, em especial para a sua filha querida, que toma parte importante nestas memórias.

         Considera inicialmente que sua vida é comum, como as outras, com altos e baixos (linha 31 a 33: É uma vidasinha como mil outras. Mas pode ser que, não por uns pequeninos e frágeis êxitos que teve, mas pelos seus altos e baixos, pelas suas quedas e soerguimentos, ...), que não merece tanta importância assim. Deseja escrever suas memórias de modo despojado, sincero (linha 42 a 45:..., principio a lançar nestas folhas umas recordações. Recordações em que não haja preocupação de estilo. Nada de polimento de frase, nada de literatura. Que o meu pensamento brote espontâneo do coração e tombe sincero da pena.) e abrangendo principalmente sua juventude (linha 51 a 54: ... olhando longamente para trás, olhando para esse caminho que percorri com o peito mordiscado de apetites, olhando para essa minha calorosa juventude crivada de tontices mundanarias, .... ; linhas  219 e 220: ... vivera às soltas trinta anos de vida mundana.). Em seu depoimento, Paulo Setúbal pretende endereçar seu relato a um tipo de leitor que possa efetivamente captar sua mensagem (linhas 147 a 153: ... vou retomar o fio da historia começada. Vou contá-la aqui tal como aconteceu. Sei bem que os ledores das páginas violentas da vida, hão de certamente escarnecer desta minha ingênua página. Não faz mal. Não é para os ledores de páginas violentas que eu estou escrevendo. Eu estou escrevendo para as almas que a feiúra do mundo ainda não encoscorou. Para aqueles que ainda têm fibras enternecidas no coração. Esses, acredito, lerão “sentindo” o que aqui vai, e, portanto, lerão com ternura este meu conto.) Ele não escreve por escrever – não se trata definitivamente de um texto literário, como tantos outros que o autor proficientemente realizou.

Paulo Setúbal espera que o leitor possa ‘sentir’ o que ele comunica, posto que precioso para ele. Quem entender seu texto pode se considerar como que uma pessoa especial, que não se deixou decair pelo mundo.

Em segundo lugar, Paulo Setúbal deseja que seu texto sirva como estímulo a alguém adoentado que percorre semelhante calvário como ele percorreu (linhas 37 a 39: ... sirva acaso de lenitivo e de soerguimento a algum desconhecido irmão de infortúnio que, com o seu impotente desespero, arraste, por essas estações de cura afora, dias excruciantes de amargor e de sucumbimento) - um calvário físico e psicológico, dada as suas condições pessoais e familiares. Ele se dirige diretamente em varias passagens a um irmão de sofrimento (linhas 11 e 112:  Porque o sofrimento, meu pobre irmão da cadeira de lona, o sofrimento é dádiva do céu.; linhas 128 a 132: ... quem jamais soube lá os desígnios secretos de Deus? — o caminho dorido e áspero, mas abençoado, que, fazendo-me ascender do charco às estrelas, levou-me devagarinho, mansamente, para esta doce paz de espírito em que hoje vivo, para este remansado sossego de consciência, e, sobretudo, para esta felicidade — escute-o bem, meu irmão! — para esta paradoxal felicidade de me ver doente...; linhas 135 e 136: Mas olhe, meu irmão, meu desconhecido companheiro de desgraça, não dê ouvido a esses. Não dê. Aproxime-se ... ). Paulo Setúbal afirma que, logo no começo de suas cogitações em escrever suas memórias, antevendo mesmo sua própria morte, a idéia de deixar seu testemunho para outro doente foi crucial, conforme se vê às linhas 39 a 42: Essa idéia, pois, só essa idéia deu-me animo a que, vencendo desalentadoras canseiras, eu me atirasse — Deus sabe como! — a esse trabalho que os meus olhos não verão em livro. Se ele foi capaz de, enfrentando o calvário, auferir alegria e o reconhecimento dos céus, não obstante julgar-se desmerecedor, outros também poderão beber da mesma fonte e animar-se a percorrer também seus próprios caminhos e que, quiçá, possam ser abençoados como ele.

O terceiro projeto de Paulo Setúbal em seu texto, muito ligado ao projeto anterior, consiste em desafiar o leitor a que este examine sua vida como ele fez, e que a reoriente para o bom caminho. Paulo Setúbal oferece argumentos que justificam a justeza de sua conquista (linhas 674 a 678: Meu amigo, você que ora lê esta página, recolha-se por um momento. Ponha a mão na consciência. Diga: se você acaso morresse hoje, sem haver meditado com seriedade nestas cousas, não teria medo de ouvir aquela palavra fulminadora (de Cristo): ‘não vos conheço?’  Pense um pouco. Reflita. Quanto a mim, meu irmão, se eu acaso morresse hoje, não sei o que me haveria de acontecer. Não sei.). Foi seu primeiro impulso, a primeira idéia, a primeira motivação, conforme se vê nas linhas 18 a 27: ... uma dessas emoções. Pensei em escrevê-la. Escrevê-la, é preciso que eu o diga, não para que o mundo a lesse, mas tão somente pelo gosto de guardar comigo, fresca e viva, uma das passagens mais comovedoras da minha vida. Mas refleti melhor. Porque não haveria o mundo de ler a página que eu me propunha escrever? Não havia aí desdouro, nem vileza. Ao contrario. Havia nela, embora tímido, embora sem relevo, um ensinamento aos que fraquejam. Mais acertado pois andaria eu se, ao invés de escrever apenas uma, escrevesse outras e varias páginas que, enfeixadas, formassem como que um caderno das minhas notas intimas, notas vividas, notas humanas, as quais pudessem um dia (quem sabe?) vir com proveito a lume. A humildade manifesta em suas palavras endossam o caráter que o imbuía (e a seu labor) à época – mais valeria sua escrita se fosse proveitosa, não pelo que ele era ou significava, mas pela vivência que estava testificando, como um verdadeiro selo, a justificar a necessidade de se reformar a vida.

Paulo Setúbal revela sutilmente ao leitor aquilo que ajudou a transforma-lo: uma promessa, que obrou grande efeito nele quando mais precisava (linhas 63 e 64; 70 a 77: Hora dura foi aquela hora da minha vida. Naquela hora dura, contudo, o Cristo apareceu de improviso no meu caminho... ;  Ele parou de súbito em meio do caminho. Parou e disse: “Bem-aventurados os que choram porque eles serão consolados”. Bem-aventurados os que choram... Que esquisita palavra e singular promessa! Bem-aventurados os que choram... Aproximei-me um pouco mais do viajeiro. Eu estava nesse instante muito sucumbido. Eu estava extenuado e desbaratado pelo sofrimento. Ele reparou no meu sucumbimento e no meu desbarato. E disse: “Vós que andais afadigados, vós que gemeis sob o peso dum fardo pesado, vinde todos a mim. Eu vos aliviarei”. Acerquei-me com sofreguidão do homem que prometia aliviar-me. Ele continuou ...) Paulo Setúbal, engrunhido pela doença, vai auferir forças ao confiar em Cristo e assim obter seu perdão (linhas 752 e 753: ... conduzir-me de novo, com as suas mãos de seda, amorosamente e ardorosamente, aos pés de Cristo que perdoa tudo.)  Esta aqui era a sua final ‘certeza’; ele realizou as bases, como que numa hipóstase, para a materialização da esperança, que se traduziu veraz (ele teve paz de espírito, a paz dos que estão de consciência tranqüila, a paz dos que são perdoados, a paz dos que aceitam verdadeiramente a Cristo), logo na antevéspera de sua morte. E como se materializou? O homem velho morreu, ‘virou’ cinza, que o lixeiro levou boa parte, mas que sua filha recebeu uma porção...

Aqui, neste projeto, Paulo Setúbal explica o paradoxo de sua serena, ditosa e elevada (mas estranha, como ele diz) felicidade, que o faz ter sossego de consciência: ele a obteve pelo caminho do sofrimento, contrariando a lógica do mundo (linhas 105 a 134:  Mas que felicidade diferente da felicidade que o mundo sonha! É uma felicidade estranha. Felicidade que os homens, correndo atrás de delicias e voluptuosidades, nem sequer suspeitam que existe. Felicidade que é feliz na ventura, mas muito mais feliz na desventura. (...) Felicidade que é feliz nas horas de doçura, mas muito mais feliz, infinitamente mais feliz, nas horas de sofrimento. Sim, nas horas de sofrimento. Porque o sofrimento, meu pobre irmão da cadeira de lona, o sofrimento é dádiva do céu. (...) É tesouro que nem todos têm a dita de possuir. Foi pelo sofrimento que eu conheci de perto o meu Amigo. (...) Ele se empenhou sempre, com amorável tenacidade, a que eu me chegasse a Ele através dos reveses que me mandou. Verifico-o, hoje, claramente. Pois, ao volver agora os meus olhos para o caminho percorrido, vejo que tive ao longo dessa minha jornada alguns pobres triunfos que outrora me enlevaram. Mas nos momentos exatos desses triunfos, nos momentos em que, por circunstancias varias e em varias ocasiões, parecia que o meu destino ia alar-se a sucessos ainda maiores, eis que um golpe adverso, áspera vergastada dos fados, matava no seu nascedouro, sem dó, a vitória que despontara ontem. Essa vergastada era sempre uma doença. Um sofrimento. Esse sofrimento, contra o qual eu, espumando fel, me rebelei tantas vezes de punhos fechados, sofrimento que estrangulava todas as minhas ambições, que arredava com mão de ferro a minha mocidade do mundo vão que eu amava, esse sofrimento que, culminando, terminou por fazer de mim este misero trapo humano que hoje sou, este sofrimento foi — quem jamais soube lá os desígnios secretos de Deus? — o caminho dorido e áspero, mas abençoado, que, fazendo-me ascender do charco às estrelas, levou-me devagarinho, mansamente, para esta doce paz de espírito em que hoje vivo, para este remansado sossego de consciência, e, sobretudo, para esta felicidade — escute-o bem, meu irmão! — para esta paradoxal felicidade de me ver doente, certo de morrer breve, e, por isso mesmo ditoso, serenamente ditoso, porque sinto que fui assinalado pela mão oculta e misericordiosa do Cristo). Nosso autor percorre, nestes parágrafos, como que um resumo do que foi sua própria vida, em especial os últimos acontecimentos, culminando não em desespero e abandono, mas em calma e serena paz, quietude, suprema bênção que só é concedida aos que plenamente aceitam o Cristo mediante a transformação total, corporal e espiritual – homem novo pelo homem velho. Paulo Setúbal vê claramente isso, às portas da morte, sem proveito algum a não ser o de dizer, de modo veemente, autêntico, a qualquer desconhecido que chegue um dia a ler suas memórias, a saber de sua ventura de ser abençoado pelo Cristo, mediante seu merecimento. Paulo Setúbal oferece com seu testemunho o exemplo de que se pode alcançar a plenitude, mesmo que por caminho sofrido, pedregoso, mas venturoso.

O último projeto que Paulo Setúbal revela é seu desejo de entender porque ele, vindo de boa família, se desviou por 30 anos da fé (Linhas 684 a 686: Porque eu, cristão, eu, nascido numa família cristã, eu, educado num colégio cristão, eu, que cheguei a ser noviço na Ordem Terceira do Carmo (!) — eu não era cristão. Como?...). Ele afirma o paradoxo da conduta mundana frente ao que estabelece a lei de Cristo (linhas 652 a 668: Eu me dizia católico. Católico como toda a gente se diz no Brasil. Porque eu, é bom que você o saiba, nasci numa família ferventemente católica e eduquei-me num colégio irrepreensivelmente católico. Fui inúmeras vezes à Igreja. Ouvi inúmeras vezes a missa. Bati inúmeras vezes no peito. Mas que cousa adianta lá, meu amigo, dizer-se homem católico, ir à igreja, ouvir a missa, bater no peito? Que valem, sem o espírito, essas materialidades? Cousa nenhuma. Foi por isso, por não valerem cousa nenhuma, que disse o Cristo aquela rude palavra imorredoura: “Nem todo aquele que me diz Senhor, Senhor, entrará no reino dos céus". Não entrará. Não poderá jamais entrar. Porque é embuste risível, porque é miséria, dizer-se um homem cristão, e, ao mesmo tempo, fugir jeitosamente do parente desafortunado que lhe bate à porta; porque é embuste risível, é miséria, ir de manhã à igreja, compungidamente, mas jantar à noite com mulheres pagas nos restaurantes alegres; porque é embuste risível, é miséria, ouvir a missa nos domingos, mas explorar durante os seis dias da semana o operário que trabalha na fabrica; porque é embuste risível, é miséria, bater no peito diante de Deus, mas estadear diante dos homens, com enfatuamento, a grandeza do seu tom de vida ou a soberba da sua inteligência e do seu sangue.)  Paulo Setúbal vai organizar seus sentimentos e integrá-los numa explicação que dê coerência a si mesmo, face ao contra-senso que representou em boa parte de sua existência. Neste projeto de entender sua trajetória vivencial, Paulo Setúbal rememorará nos 14 capítulos finais de seu Confiteor as passagens mais marcantes de sua vida, onde identifica claramente as contradições que dissipou desde a sua efetiva entrada no processo de conversão.

         Colocadas estas interpretações posso agora enunciar o que considero a unidade de sentido da vivência que Paulo Setúbal expõe em seu depoimento, em outras palavras, o contexto de sentido (Sinnzusammenhang). Ele revela que deseja realizar consigo mesmo, mediante o texto, como que um ‘resgate’, testificando de sua trajetória de vida, e assim remir-se do cativeiro psicológico/espiritual onde se encontrava, por causa do seu afastamento de tantos anos da religião, da rejeição do Cristo. Temeroso seria o encontro em breve com Ele, se assim não procedesse. Paulo Setúbal, divisando a morte a poucos meses, reorganiza em sua mente tanto os fatos quanto o percurso que desemboca na efetiva conversão ‘de cristão ao cristianismo’, como ele diz. No texto, que relata o núcleo deste amplo processo de conversão, todo seu discurso - descrevendo suas experiências anteriores e o clímax - visa reorganizar em seu espírito o turbilhão de acontecimentos, de modo a pacifica-lo, preparando-o para o sabido encontro derradeiro com o seu Cristo, ao fim desta vida.

Constato no magistral texto a interface entre o todo e as partes, onde cada uma provê sentido à outra. Este texto constitui percuciente emblema do que se pode trabalhar eficazmente com a abordagem hermenêutica, não só facilitando a compreensão da sincera mensagem, mas das interconexões das intencionalidades presentes na construção da mesma. O critério que me baseio para justificar minha certeza quanto à justeza da compreensão, é a concordância de todas as partes singulares com a totalidade. Digo que o cânon hermenêutico aqui se manifesta, no sentido de o objetivo de todo entendimento e compreensão é o acordo quanto à coisa, e as partes do texto efetivamente sustentam entre si a totalidade donde se originam.

Outra regra hermenêutica se mostra satisfeita no sentido de que têm-se ali no texto as bases para falar de correção da compreensão, visto que minhas demonstrações são compatíveis com o sentido originário intencionado pelo autor.  Digo que a correção, parafraseando RUEDELL (2000, p. 109), é uma “instituição intersubjetiva, — como o é a própria linguagem que a estabelece”. Este diálogo que estabeleci com o texto de Paulo Setúbal estabeleceu o plano, a fundamentação para a emergência da compreensão. Creio que cumpri o que Kenneth J. GERGEN (1990), comenta como o aspecto ‘relacional’, dialogístico entre intérprete e autor como fundamento para a emergência da compreensão. Não somente averigüei a correspondência entre intenção do autor e a minha interpretação, mas senti a sua palavra como verdadeiro convite. Creio que minha compreensão não se situa em mim, como mero leitor, interlocutor ou no parceiro de diálogo, mas é o que geramos conjuntamente. No fundo procurei cumprir o princípio afirmado por GADAMER (2002, p. 73), fundamental de toda interpretação: procurei compreender um texto a partir dele mesmo, complementado com a abertura ao que Paulo Setúbal dizia, de modo a integrá-lo à minha própria expectativa múltipla de sentido.


Minha vivência ao trabalhar com o relato da conversão em Confiteor


         Inicialmente digo que me senti identificado com o autor quando da profunda introspecção que realizou. Pode-se ter, a princípio, a impressão que Paulo Setúbal obrou tal empreitada em hora extrema, mas na verdade suas memórias culminaram todo o seu processo de vida em geral e o seu calvário em particular, posto que este esteve presente em boa parte de sua existência adulta. Não se pode imaginar a magnitude de tal livro como sendo um arroubo momentâneo, oriundo de um padecimento agudo ou de um infortúnio inopinado. Não se desvela textualmente o espírito assim, com tal densidade, de uma hora para outra.

Por outro lado, minha história de vida pessoal foi marcada por períodos intensos de meditação na infância tardia e juventude, de reflexões solitárias e sorumbáticas, não originadas de sofrimento físico, mas de isolamento e solipsismo auto-imposto. Já maduro, vivenciei dois processos de conversão, o primeiro (de católico para mórmon), desembocado após período de crise econômica-financeira/familiar e outra (de mórmon para zen-budista), no bojo de intensa procura/insatisfação intelectual e espiritual. Nestas ocasiões minhas crianças pequenas tomaram parte intensa como objeto de conjecturas e significações, ‘cooperando’ na definição das conquistas. Acredito que Paulo Setúbal, intelectualizado e muito amoroso com a prole, teve também nestes dois domínios alguma base para sua abertura à vivência de conversão, aspectos que considero como que intrínsecos num processo desta natureza.

         Complementarmente, minha trajetória acadêmica, em especial no mestrado e no doutorado, ambos completados na totalidade do período permitido, foram plenos de experiências enriquecedoras. Os seminários avançados de pesquisa e as orientações monográficas moldaram indelevelmente a propensão ao rigor e a meticulosidade, sem fechar o espírito a outras significações. Outra faceta de meu percurso estudantil (e vislumbro também no trabalho psicoterapeutico) foi a atenção às questões da linguagem, suas nuances e determinações. A descoberta da Hermenêutica – que considero somente ter ocorrido agora - foi um desenlace até certo ponto ‘previsível’ para mim. Confesso que me sinto muito seguro atualmente na prática intelectual e profissional, visto que existe uma profunda teoria com a qual me identifico, embasando amplamente meu proceder.

         Trabalhar com este texto foi uma experiência única. Digitar o texto a partir do livro original (com páginas se desfazendo...) foi como tratar efetivamente uma obra de arte, em diversos sentidos. A solidão das analises realizadas no escritório e no quarto de hotel me levaram não poucas vezes às lágrimas, em especial na passagem de Paulo Setúbal com a filha, sua amada filha (como não realizar paralelos com a minha caçulinha Lívia, de 2 anos e meio?) quando ela - do nada - pede para que ele destrua o livro que desejava publicar. Somente quem vivencia intensos momentos de solidão, de temerosa mas inafastável e necessária introspecção, sabe que não se pode escapar de sua determinação, do reencontro consigo mesmo, sob pena de despersonalizar-se, de negar-se a si próprio.

         Devo dizer também do enorme prazer que significou realizar este aprendizado, sabidamente provisório, mas pleno de conquistas, em diversos níveis. Não só a mente, o intelecto deixa-se aprimorar, refinar suas ferramentas, mas o espírito fica mais humilde, paciente, ao mesmo tempo que maravilhado. O estudo e o trabalho com o texto da tese ficaram ao mesmo tempo mais árduos, mas mais acessíveis, mais factíveis e mais recompensadores.

         Por fim, uma certa ‘angústia’ que a Hermenêutica ajuda a dissipar: ao contrário dos meus alunos que elaboram monografias de final de curso de graduação, que reclamam nunca terem acesso suficiente a referências, fontes bibliográficas etc., para subsidiar suas análises, minha tarefa aqui muitas vezes consiste em ter que escolher, decidir entre autores, entre linhas de argumentação, entre contribuições que poderiam, todas, estar presentes nesta discussão. Por questões acadêmicas (e de espaço), ‘muita’ coisa acaba sendo não aproveitada, não incluída mas, de qualquer modo, estas escolhas refletem também um olhar pessoal, que resulta do diálogo, antes conosco, mas principalmente com o(s) autor(es) dos textos.


         Vimos neste capítulo a análise hermenêutica de um texto sobre conversão, explicitando a trajetória de ampliar os horizontes de compreensão. Apresentei inicialmente a cronologia básica do texto originário, com a sua linha de argumentação. Procedi à análise hermenêutica realizada do depoimento e encerrei esta parte discutindo minha vivência ao trabalhar com o texto de Paulo Setúbal. No próximo capítulo iremos discutir os achados desta atividade hermenêutica.