Uma cena comum em muitas cidades aqui do sudeste no começo
do ano é o sofrimento das criaturas que, morando em lugares de risco, tem suas casas
invadidas pelas águas torrenciais oriundas das copiosas chuvas que
habitualmente vem depois das festas de fim de ano. Não bastasse isso, este ano
houve cidade em que o lixo (não recolhido por vingança de políticos que não se
reelegeram nas ultimas votações) se somou ao entulho carregado pelas torrentes
que veio das montanhas e encostas próximas às casas e prédios comerciais, onde
as pessoas teimam em edificar suas construções.
O mais chato de tudo é que tais tragédias se repetem há
tempos, e o jogo de empurra-empurra se alterna
com os discursos inflamados de políticos e autoridades (ao que parece, sumamente
comovidos com a provação das famílias, assoladas por vezes com a perda de
parentes, além dos bens móveis e imóveis), prometendo a solução do amplo
transtorno. E desgraçadamente eu, que olho de longe tal sofrimento, a salvo de
tais perigos, além das minhas orações, não me encorajo em enviar algum
donativo, pois não tenho a mínima confiança de que o recurso, ainda que parco,
será empregado apropriadamente, dada as notícias de desvio de verbas por parte
de corruptos alocados em diversos níveis da sociedade pertencente às áreas
atingidas. Evito até ligar a TV ou escutar os noticiários do rádio nesta época...
O tema do sofrimento é sempre presente para o homem. No cristianismo, a 'obra prima' do ensinamento sobre o sofrimento encerra-se no Livro de Jó. Sempre pensei sobre isso em minha vida, ainda que eu pouco tenha sofrido em toda minha existência. Não considero hoje que tenha 'sofrido', pois quando miramos o que vivenciam diariamente nossos semelhantes, tudo o que passei é quase irrelevante. E quando penso sobre o sacrifício expiatório do Cristo, vejo que nada tenho a lamentar ou reclamar e, sim, a agradecer. Todo o tempo.
Outro dia revi alguns papéis guardados, lembranças de um
tempo bom que vivi intensamente. Eu já comentei que estudei bastante o Budismo,
em especial a doutrina Zen (e, dentro desta, a escola Soto). Não me aproximei
da doutrina de Buda como religião (alguns assim a consideram, mas prefiro
considera-la enquanto ‘prática que nos
ajuda a eliminar os pontos de vista incorretos’ como ensina o monge vietnamita
Thich Nhat Hanh), mas pelas interfaces que possui com a Psicologia. Na verdade,
existe até uma ‘Psicologia Budista’, que auxilia muito a pessoa a ajustar sua
conduta, a partir da reflexão sobre as melhores práticas mentais para lidar com
suas intelecções de modo apropriado.
Uma das lições principais desta abordagem – digo que a lição
fundamental, do qual todas as demais derivam - é a proposição da meditação
sobre as Quatro Nobres Verdades, enunciadas diretamente pelo príncipe Sidharta
Gautama quando da sua iluminação, ou seja, quando ele finalmente compreendeu a
sua situada condição. Existem centenas de livros refletindo somente sobre esta
temática. A primeira nobre verdade é o Sofrimento, inerente à existência do
homem, e que precisamente existe ‘em tudo’, é onipresente. A segunda verdade nobre é a
Origem do Sofrimento, que reside no apego que o homem desenvolve em seu existir
cotidiano, ou seja, nos caminhos indignos que ele trilha e que conduzem ao
sofrimento. A terceira nobre verdade é a Cessação do Sofrimento; a
possibilidade do sofrimento ter um fim – é possível ao homem atingir o
bem-estar. A quarta verdade nobre encerra o caminho para o surgimento do
bem-estar: o Caminho Óctuplo, o nobre Caminho, ou como os chineses traduziram,
o ‘Caminho das Oito Práticas Corretas’, as práticas retas, realizadas na forma
certa, apropriada.
Praticar o Budismo se resume em aprender (é o ‘despertar’, ou a 'iluminação') a
conduzir a si neste caminho de oito práticas, que é o que vai determinar a
eliminação do sofrimento da vida da pessoa. Obviamente que, compreendendo o que
este pequeno e superficial resumo encerra, veremos que a prática aperfeiçoante
deste caminho pode abranger toda a vida da pessoa, e é isso mesmo... E quais são
estes 8 passos? Auferir a Compreensão Correta, o Pensamento Correto, a Fala
Correta, a Ação Correta, o Meio de Vida Correto, o Esforço Correto, a Atenção
Plena Correta e a Concentração Correta. Não há nesta lista precedência ou grau
ou subordinação entre os passos, posto que são inter-relacionados entre si como
numa matriz; cada passo contém todos os outros sete... Vou comentar cada um deles nas próximas postagens.